domingo, 25 de fevereiro de 2007

Recado ao senhor do 903

(Entre os exercícios de português atrasados que fui colocar em dia, pude me deliciar com esse texto de Rubem Braga que merece ser levado adiante.

“Vizinho-
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível ao 903 dormir quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita: pois, como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903- que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, de ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo.
Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109, que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda o outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
...Mas que seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em sua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela.”
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos do vizinho entoando para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz. ”
(Rubem Braga)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Carnaval

Estava sentada sozinha na noite e na rua. Tentava sufocar as mágoas num gordo pão de mel. Deitei, olhando o céu, ouvindo música. As estrelas brilhavam sem muito brilho, pálidas e bobas, distantes. Uma, porém, passou a brilhar mais e mais, sozinha bem na reta do meu olhar, e naquele momento pensei “solitária como eu”. Tentava evitar as lágrimas que queriam escorrer de meus olhos desenhando imaginariamente figuras geométricas nas estrelas. De repente uma palavra de uma estranha indagando se eu queria ajuda (me confundindo com os inúmeros bêbados que jazem pelas calçadas nessa época) fez desencadear meu choro desconsolado. Chorava e já nem sabia mais porque chorava, chorava feito criança, esperando uma resposta das estrelas, esperando delas um abraço, um apoio que não veio.

Já em casa tudo em mim se misturava. A música, o banho quente, o barulho distante de uma cachoeira, lágrimas, duas meninas conversando numa pedra à beira d’àgua, a água quente caindo na nuca, dois corpos salpicados de sol de fim de tarde numa esteira sobre a grama fofa embaixo de uma árvore, a conversa sincera, o mal-estar do choro, os gritos recentes: desabafos enraivecidos, o rosto inchado. Palavras silenciosas ecoando em minha cabeça. Uma boca cuspindo um texto pronto feito da minha desgraça, soletrando palavra por palavra o que eu viria a digitar depois. Maldita boca cheia de palavras que não deixa minha cabeça.

Depois me arrumei e me fiz bela, passei a maquiagem, coloquei a máscara de menina animada e saí pra uma noite inteira pulando. Era carnaval.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Morri

e não me dei conta
no momento em que entrei nesse mundo.
Mas passei a viver
como alma translúcida
observando a vida ao redor.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Seu Domingos

Um velhinho pequenino, de cabelos brancos e ralos, a calva subindo pela cabeça, mais avançada nas suas laterais. O rosto sempre sério, expressão fechada, braços cruzados. Uns óculos de armação fininha apoiados sobre o nariz do rosto enrugado de pele clarinha. Um jaleco sempre sujo de giz com uma caneta no bolso. Os cabelinhos ralos que insistem em ficar despenteados lhe dão um arzinho de “professor maluco”.
Suas aulas são odiadas por grande parte dos alunos. Ele enche a lousa com desenhos complicados e explicações em letras miudinhas. Fala pouco, explica rapidamente a matéria e não troca com os alunos uma única palavra que não seja relacionada a ela. Poucos ousam fazer-lhe perguntas.
Dizem que já deu aula em grandes escola e universidades e para grandes nomes como Maluf (!) e Chico Anísio (!!!!!!!!!!!!). Dizem que já foi alegre e brincalhão, viajava com os colegas e fazia tudo por uma cervejinha. Dizem que trabalhava demais, mas um dia decidiu parar e se dedicar à sua amada. Dizem também que no momento em que decidiu dedicar-se a ela, para um câncer perdeu-a. Dizem que a partir daí passou a viver amargurado.
Hoje tem sua rotina. Corre todas as manhãs, almoça sempre no mesmo restaurante com uma latinha de Skol. Dá aulas mecanicamente em uma escola particular numa cidadezinha de interior, ensinando a adolescentes da elite local, mimados e desrespeitosos. Conversam enquanto ele explica sua matéria. De 35 alunos, 7 prestam atenção. Eu presto atenção. Não à matéria, pois biologia não me interessa minimamente. Presto atenção nele. Sua voz que parece uma gravação de aula pronta, sua impaciência ao não receber respostas às suas perguntas, seus gestos sérios, sua expressão inalterável diante da barulheira na classe, seu olhar perdido na sala, evitando outros olhares, seu jeito curvadinho de escrever na lousa. Tudo nele me intriga. Quem é o homem por trás do professor? Observo-o longamente durante a aula e escrevo. Tudo que faço é observar e tentar compreender esse velhinho que de repente eu surpreendi me encarando. E por alguns segundos nos encaramos nos olhos.
Bate o sinal. Ele pega o caderno de chamada, a caixa de giz e sai pelos corredores para seu almoço solitário com companhia apenas da latinha de Skol.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Momento pra recordar

Numa tarde quente, num quarto escuro eu cochilava levemente a preguiça de depois do almoço.
Encolhida, de lado, abri ligeiramente os olhos e me deparei, tão perto do meu rosto, com um outro rosto, que com a expressão de quem vê o pôr-do-sol na praia ou uma lua cheia entre morros, assistia atencioso meu sono.
Com os olhos quase fechando envolvi com minha mão sua nuca e guardei como tesouro a lembrança daquele momento, porque nada mais importava, fose sono ou calor. Só o amor expresso naqueles dois rostos tão próximos.
Sem palavras.
Momento pra recordar e expor placidamente numa bolha de sabão.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Ahh, essa menina....


Lá vai a menina falando de si mesma na terceira pessoa. Muitas vezes ouviu dizer que era perfeita, mas tem real consciência que não é. Porque insiste em ser modesta, mesmo quando sabe que não devia ser, e já ouviu muitos “Deixa de ser modesta, que saco!”.
A menina fica sozinha em casa, larga o uniforme amarrotado em cima da cama, esquece de pôr as meias pra lavar e acaba sempre perdendo um pé delas. Passa o tempo lendo revistas e livros ou desenhando e ouvindo música, e se esquece de lavar ou passar suas roupas, e depois não tem roupas limpas ou passadas pra vestir, ou esquece de lavar as louças, e sua mãe quando vê fica louca, ou esquece de estudar, fazer aquele exercício, separar a apostila que tinha de levar pra aula seguinte.

Esquece da vida e se atrasa pra aula de dança, desce as ruas da pequena cidade quase correndo e já chega na aula cansada. Fica sozinha e anda de calcinha pela casa, mas às vezes esquece alguma cortina aberta e corre a se abaixar para evitar o olhar dos vizinhos. Senta-se à mesa e tira os chinelos, estende uma perna apoiando o pé na outra cadeira e quando levanta esquece os chinelos embaixo da mesa. Esquece a garrafa d’água destampada e o pacote de pão aberto. Coloca o som no último volume, canta e dança feito louca (pobres vizinhos...).

Acaba com suas unhas, arrancando pedacinhos, cortando-as muito curtas, acaba se machucando. Não resiste a cutucar uma espinha na testa ou espremer um cravo no nariz. Passa os dias contando calorias, mas acaba deslizando e se tacando num pacote de bolachas ou numa lata de leite condensado.
Isola-se do mundo com seu MP4, e se transporta a um mundo paralelo, observando as pessoas, tentando imaginar o que sentem, porque são assim e não assado. Durante as aulas, ouve música, escreve textos na agenda e nos cadernos, desenha nas folhas da apostila onde devia fazer exercícios, se perde em pensamentos, não revela o que sente. Vê em cada coisa do seu dia um assunto para novos textos, escreve vários e muitos outros ficam só no projeto mental. Em vez de dizer o que sente, transforma os sentimentos em poesias, publica-os no blog e pede para estranhos lerem.
A menina se perde em sonhos, pensamentos, ilusões. Sonha alto mas nunca sai do lugar; as fitas das sapatilhas de ponta que usa em cada um desses sonhos amarram seus pés fortemente ao chão.