segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Rezo

Ave Maria, gratia plena,
dominus tecum.
Benedicta tu in mulieribus
et benedictus fructus
ventris tui, Jesus.

Sancta Maria, mater dei,
ora pro nobis, pecatoribus,
nunc et in hora
mortis nostrae.
Amen.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Expurgatório

O peso é maior quando nem se consegue escrever.
Cansaço, medo, descompasso.
Emotiva, impulsiva.
Sentido, sentir.
Sentir.
Espremo as palavras e os dedos no teclado. Espremo as lágrimas. Espremo músicas buscando calma. Espremo chocolate na boca.

Solto a respiração, longa.
Sorriso.
Algo mais me move.
Puxa e empurra.
E eu poderia até voar...
Mas vou andando mesmo.
Que acredito nesse chão.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Lição de viagem

As paisagens correndo pelas janelas do carro dançam ao som de uma valsa de Strauss.
Verde, azul, marrom, amarelado. A plantação de sorgo forma curvas efêmeras em sua superfície, passam pelos olhos como numa ilusão. Ao longe, na estrada reta mas não plana, os morros sucessivos brincam de esconder-se uns atrás dos outros, e reaparecer como que por mágica. Dançam.
Mais impressionante, ainda, é a explosão de céu. Vem lá longe o viaduto, com um retangulozinho de azul por baixo, uma tripinha apenas. Vem se aproximando, aumenta como o crescer dos instrumentos numa orquestra, o retângulo azul. E quanto mais perto, mais rápido, em êxtase. Por fim o viaduto passa, e o azul explode por todos os lados. Estraçalha a moldura cinza de cimento, e passamos a correr dentro da explosão da cor de violinos.
Desceu o sol, acenderam-se as estrelas, e, como que dando adeus ao carro em etapa final de viagem, o Curiango canta seu canto de solidão. Nos últmos momentos de velocidade, correm luminosos dois rios paralelos, serpenteantes, ligeiros, opostos. Sêmem e sangue, acompanhados de tango.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

domingo, 18 de outubro de 2009

Da dificuldade de se escrever sobre amor

É simples escrever só sobre amor.
Poderia facilmente descrever belas cenas vividas, doces sensações, elencar uma série de pequenos detalhes, pequeninos encantos, e dizer o quê e o quanto eles significam para mim.
Acontece que tantos textos assim já escrevi, recheados de encanto, doçura e imaturidade, que seria leviano escrever agora outros mais, aproximando assim, por meio de palavras, o presente do passado.
Guardo, agora calada, toda doçura, todos detalhes, pequeninos encantos e o que significam para mim. Calo-os, guardo-os, digiro-os, amadureço-os para que depois, bem depois, quem sabe (e bem quem sabe), possa escrevê-los com a dignidade que merece esse amor.


"A dança tem de ser como um sussuro, só para dentro do casal."


O Seu Santo Nome - Carlos Drummond de Andrade
Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Vereda

O calor da tarde de novembro e a sonolência da sesta embalavam-na. O ar, parado, preenchido pelos murmúrios da televisão e o zunir de uma mosca. Batia incessante, incessantemente na janela, tentando retornar à rua.

Pernas flexionadas, plantas dos pés no chão, brincava com os dedinhos na textura do tapete. O calor, tanto, que suspendeu o tecido leve do vestido acima da cintura. Algodão branco, estrelas azuis, pousou-as sobre o peito. As mãos, acomodou-as sobre a pele fresca, agora livre, da barriga, que ronronava ainda e fazia os leves movimentos da digestão.

Os pensamentos passeavam, fiapos, soltos, aéreos, quarto abafado. Passeavam pelos acontecimentos, pelas palavras da senhora advertindo-a... Então... Mocinha... Sim, sabia também de várias colegas, da escola... Ah, mas essa mosca não sairá nunca para a rua? ... As colegas falavam de meninos, houve uma vez aquela festinha... Ai, lábios? Línguas? ... Sensação estranha deve ser, só pode! ... Podia abrir a janela para a mosca sair...

Tentou mover um pouco as mãos, levantar-se em direção à janela, tentativa sem forças. Pensamentos, fiapos, uma curiosidade foi tomando-a. Curiosidade lenta, receosa, fez sua mão, dedos finos, unhas roídas, deslizar lentamente, passando pelo umbigo em direção ao baixo ventre. Sentia ali, respiração, pele, penugem dourada.

Os músculos contraíram-se. O que fazia? Não parou, entretanto, o movimento lento e contínuo, numa linha descendente por seu corpo. Chegou à margem da calcinha, infiltrou os dedos por baixo do elástico, a boca já seca. Seguiam os dedos como cladestinos, invasores de um terreno privado, lentos, quietos, curiosos.

Passaram pela aspereza dos primeiros pelos púbios, inda nascentes. Os joelhos cederam para os lados, moles. Um estremecimento leve e constante, recheado de receio, sacudia o corpo magro. Sentia a ansiedade e excitação de um desbravador, que aprende lentamente os caminhos de um terra nova, não explorada.

Os dedos tateavam agora as macias carnes, tentando compreender sua anatomia. Percebeu a área úmida. Forças opostas pareciam agir sobre seu braço. Um pouco mais, só... Cerrou os olhos, lábios entreabertos. Só...

Paralisou-se, assustada. Quão longe fora! As pernas tremiam, moles como gelatina. Coração em baque disparado, boca seca.

Lentamente, lentamente, encolheu-se. A mosca já não zunia na janela... Acomodou-se. Ninho de almofadas. Aninhou-se. Urso de pelúcia. Abraçou-o. Lenta, lenta. Adormeceu.

domingo, 4 de outubro de 2009

Porque é tempo de fazer tempo

O Analfabeto Político - Bertold Brecht

O pior analfabeto
é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala,

nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão,

do peixe, da farinha, do aluguel,
do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto Politico é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política.
Não sabe o imbecil que da sua ignorância política,

nasce a prostituta, o menor abandonado,
o assaltante e o pior de todos os bandidos,

que é o político vigarista, pilantra, corrupto
e lacaio ds empresas nacionais e internacionais.


Soube que vocês nada querem aprender - Bertold Brecht

Soube que vocês nada querem aprender
Então devo concluir que são milionários
Seu futuro está garantido-à sua frente
Iluminado. Seus pais
Cuidaram para que seus pés
Não topassem com nenhuma pedra.
Neste caso, você nada precisa aprender.
Assim como é
Pode ficar.

Havendo ainda dificuldades, pois os tempos
Como ouvi dizer, são incertos
Você tem seus líderes, que lhe dizem exatamente
O que tem a fazer, para que vocês estejam bem.
Eles leram aqueles que sabem
As verdades válidas para todos os tempos
E as receitas que sempre funcionam.
Onde há tantos a seu favor,
Você não precisa levantar um dedo.

Sem dúvida, se fosse diferente
Você teria que aprender

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Verde. Azul...

Era linda. Se não a encontrasse ali, diria uma turista europeia, visitando o Brasil. Roupa despojada, dia de calor.

Sentada à mesa ao lado, veio me interrogar. Fizera FAU, falava engraçado. Julguei ser o sotaque, alemão talvez. Alemã, loira, cachos.
Mas não era alemão o sotaque, era psiquiátrico.

Veio interrogar-me com ânsia, corpo inclinado para frente. Os olhos, os olhos.... claros, no meio termo entre o verde e o azul. Aquele belo meio termo. Grandes, grandes, fixos em mim, interrogadores, estalados, suplicantes, suplicando uma resposta. O rosto, belo rosto, todo súplica, todo tenso, esperando...

Esperando não, não podia esperar! Ânsia! Questionava a mim e a qualquer um a dúvida que a atormentava. Qualquer um servia. Não podia segurar a pergunta.

Inclinou-se, trespassada de ansiedade.

"É possível voltar atrás em alguma coisa que se fez? É possível voltar atrás?"

Ânsia. Olhos. Meio-termo. Súplica.

"Eu disse que queria virar puta, você acha que eu posso voltar atrás?"

Olhos. Súplica.
Me responde! Me responde! Eu preciso de uma resposta!, me diziam os olhos.
Verde. Azul. Súplica.

"E eu me queimava também. Queimava a pele com ponta de cigarro."

A pele tão clara.... tão fina... Olhos, infantis. Me olhavam de baixo, da cadeira. Os olhos de uma criança. Confessando que quebrara o vaso da sala.

...mas é que foi sem querer... eu tropecei... não queria mesmo quebrar...

Ela não queria quebrar o vaso...

Ela não queria....

Verde. Azul. Deram um nó dentro de mim.

"A gente sempre pode voltar atrás. Sempre pode... Não faz mais assim não. Vacê é tão bonita...."

Ela sorriu. Criança. Criança à qual se dá agrado. Agrado. Os olhos pedindo: "me agrada?"

Ah, criança...
Verde. Azul. Nó.
No estômago, na garganta, nariz, olhos.

"Brigada! Você também, é linda!"

"Tchau, bom almoço!"

Vim com meu nó. Não almocei.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Domingo

Dona Terezinha parou a varreção da casa para atender o vendedor das cartelas de jogo.

- Dia, Dona Terezinha! Tudo certo?

Destrancou o cadeado, subiram à cozinha. Serviu no copo o café, acendeu um cigarro. Ele espalhou pela mesa as cartelas coloridas. O barulho da panela e o cheiro de feijão cozido enchiam o cômodo.

- Pois hoje eu sonhei com um bicho meio amarelo, seu Rui, comprido...

- Joga na girafa, então, que sorte de sonho é coisa certa! E, olha só, hoje tenho uma rifa também, é de uma batedeira, uma belezura! Dois reais o nome.

Examinou a cartela. Decidiu-se por Adelaide, Elizabeth e Márcia. Foi ao quarto, tirou da lata de biscoitos, sob as roupas por passar, algumas notas amassadas, pagou o homem.

- Volto na terça. Bom domingo!

Terminou a varreção, separou feijão cozido. Ahh, o remédio da pressão! A cartela estava quase acabando e nem meio de mês era ainda. Encheu o copo de café, acendeu um cigarro, ligou a TV.

Tirou da gaveta as Tele-Senas. Era dia de sorteio. Do Carnê do Baú já ganhara um liquidificador e um aparelho de barbear, que dera ao filho. Da Tele-Sena ganhara numa ocasião cento e vinte e dois reais e quarenta centavos. Dezoito anos apostando.

Até agora, sorte pequena, mas a sorte grande devia logo chegar. Inscrevia-se também em programas de auditório. Por três vezes fora assistir a gravações, mas nunca conseguira participar. Maior tristeza quando fora pré-selecionada para o Topa Tudo Por Dinheiro, mas justo naquele final de ano em que passara as festas com a família no Alagoas ...

Separou a cartela do dia, conferiu os números marcados, rezou uma Ave-Maria, beijou o papel colorido. Chegaram a filha e os dois netos.

- Mãe, não termina o almoço não, hoje a gente vai pro shopping.

Ah, mas cada ideia! Queriam é fazê-la perder o sorteio na TV, só podia. Relutou um pouco, mas não houve jeito. Desceram a ladeira até o ponto de ônibus. Enquanto esperavam, fumou um cigarro.

O ônibus estava cheio. Ainda bem que domingo não tinha trânsito. O shopping, incrivelmente lotado. Era preciso segurar firme as crianças e abrir caminho até a praça de alimentação.

- Mãe, acho bom a senhora não comer do McDonalds, não. Lembra do colesterol que tá alto?

Procurou uma opção mais saudável de almoço. Encontrou, meio afastado dos outros, um lugar que servia pratos light. Vixe!!! Mas vinte reais só um prato de salada? Acabou comendo um pastel.

As crianças, não satisfeitas com os brindes do lanche, queriam parque. O lugar era cheio de luzes e barulho. Saiu pelo corredor, foi às casas lotéricas. A Mega-Sena estava acumulada novamente. Fez um jogo. Ali, uma TV. Logo mais, o sorteio da Tele-Sena. Sentou-se num banco, acendeu um cigarro.

- Com licença, senhora, não é mais permitido fumar no interior do shopping.

Mas como? E essa agora! Tinha de ir até o estacionamento externo se quisesse fumar. Apagou o cigarro, assistiu ao sorteio. Quase! Voltou ao parque.

- Mãe, onde é que a senhora estava? Tem de olhar as crianças para eu passar nas Pernambucanas!

Ficou com os pequenos. Fizeram birra por chocolate. Gritavam demais. Comprou um para cada. Passaram no supermercado. Foram ao ponto, acendeu um cigarro. Pegaram o ônibus, lotado de gente com muitas sacolas e que falava demais.

Subiram a ladeira. Com vagar, que as pernas já não eram as mesmas de antes. Despediu-se dos netos, ligou a TV, acendeu um cigarro. Podia agora, ao menos assistir o final do Sílvio Santos.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

fortaleza-de-lego

Dissertação Frankstein, montagem de pecinhas de lego, escrita a 6 mãos, numa "construtiva" aula de história do jornalismo.

"Faber", do latim, é construir. Talvez o nome Fabrício signifique um obreiro, um construtor. Mas o que ele constrói?

Ele pode usar sua capacidade de construir para o bem ou para o mal. Pode construir uma muralha da China, mas também pode construir um muro de Berlim.
O Fabrício que conhecemos, por natureza, e aí me utilizarei da psicologia de boteco, constrói barreiras. E isso não é necessariamente ruim. Ás vezes é fascinante.

Ah, mas o que são barreiras sem ninguém para guardá-las? De que serve uma muralha, um muro, ou cerca se não há por quem resistir? E se não há quem proteger? Porque existir?

Penso que as barreiras que ele levanta são feitas de algo diferente de concreto e tijolos. São barreiras que tem a sua essência na casa das idéias. Você pode entrar na sala, dar bom dia e ir embora. Se for um ser - humano mais "convidativo" saberá ir até a cozinha, trocar algumas frases e até conhecer o quarto. São poucos que chegam até lá. É o crivo do construtor. É a barreira seletiva dos que só chegam e dos que chegam lá!!!!!

Mas este caminho percorrido da sala ao quarto é a transposição de barreiras. Os indivíduos têm em seu peito barreiras que guardam seus segredos, suas preciosidades. Transpor essas barreiras, chegar ao fundo no conhecimento de alguém é receber um tesouro. Este construtor não seria, então, um desbravador a transpor barreiras?

Seria e o é. E deve ser por isso que você, cara leitora, está com ele. Para lhes transpor as barreiras e conhecer seus mais profundos segredos. E a recíproca dele é verdadeira também !!!

autores na boteco-groselhagem: Eduardo Graziani, Heloísa Favaro, Mariana Franco

entressafra

Baixa produção de textos... Conheci agora e adorei essa banda: Cérebro Eletrônico

(composição, Tatá Aeroplano)

Dê amor
Dê paixão
Dê espera
Dê esperma
Dê prazer
Dê fogo
Dê uma nela
De carinho
De sacanagem
De sarro
De fato
Dê amor
Dê segurança

De anca na anca dela
E amanheça de cabeça dentro dela




http://www.myspace.com/cerebroeletronico

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

quilometragem

Velha Amiga
(Cachorro Grande)

Você tem que olhar a estrada
Com uma cara cansada
Como uma velha amiga
Que você já não aguenta mais

Estou aqui de passagem
A vida é uma mala pronta pra viagem
Minha cabeça é minha bagagem
E a estrada é uma velha amiga

Com quem você pode contar?
Velha amiga

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Revirentranha

"Um prisioneiro algemado, colocado na guilhotina, ainda não está morto. Apenas um instante o separa da morte, o instante da vida em que ele deseja intensamente já estar morto." (Sartre)

(Mãe com filho morto - Portinari)

"Agora ele dorme. Ele dorme. Há muito sou uma emissária e trago em meus braços um menino encantado. Eu preciso ser breve, pois logo o menino pode acordar."
(trecho de Os Sons Antigos de Águas Apagadas - Lúcia Vitto)

... ahh, divagações junto de um café. Quem dera fosse possível financiar a paz mundial.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

numa bolha de sabão...

Cupido - Maria Rita
(Composição: Cláudio Lins)

Eu vi quando você me viu
Seus olhos pousaram nos meus
Num arrepio sutil
Eu vi... pois é, eu reparei
Você me tirou pra dançar
Sem nunca sair do lugar
Sem botar os pés no chão
Sem música pra acompanhar

Foi só por um segundo
Todo o tempo do mundo
E o mundo todo se perdeu

Eu vi quando você me viu
Seus olhos buscaram nos meus
O mesmo pecado febril
Eu vi... pois é, eu reparei
Você me tirou todo o ar
Pra que eu pudesse respirar
Eu sei que ninguém percebeu
Foi só você e eu

Foi só por um segundo
Todo o tempo do mundo
E o mundo todo se perdeu
Ficou só você eu eu

Quando você me viu...

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Arrebentação

Desceu os degraus dos cinco lances de escada tentando manter a calma, mas não só os pés tremiam: algo bem maior em seu peito parecia causar-lhe convulsões internas.

Chegou à rua. Passara por ali apenas uma vez, à noite, e tudo lhe era estranho. Tentava controlar os passos, mas eles aceleravam-se por vontade própria. Os olhos, quentes, ardiam.

Ao dobrar a esquina, não mais podendo ser observada, a caminhada acelerada tornou-se corrida desembalada. Ela não tinha controle sobre seu corpo. Não sabia também o porquê, mas tinha necessidade de correr.

Os olhos queimavam feito brasas. Como nosso corpo, que quando quente produz suor para se refrescar, seus olhos produziram lágrimas para aplacar o ardor. Mas elas estavam longe de serem frescas. Rolavam quentes, pelo rosto quente, pela manhã quente.

Não conhecia o caminho, mas deixava-se levar pela intuição: a maresia a atraía. Corria pelas calçadas e atravessava ruas às cegas, guiada simplesmente pela umidade salgada do ar que ia aumentando.

Chegou por fim à praia. Atravessou a avenida, o calçadão, tocou os pés na areia. Correu até a beira da água, pôs-se a caminhar.

Sem o desespero de antes, suas lágrimas iam juntar-se à agua do mar, lenta e continuamente. Dúvida, medo, confusão ainda se entrelaçavam dolorosamente em seu peito. Mas pisar a areia úmida, continuamente, continuamente, continuamente, era como uma anestesia mental, calmante de tarja preta. Andar sem destino, sem propósito, sem vontade de chegar a lugar algum ou principalmente sem vontade de voltar. Continuar infinitamente caminhando pelo desconhecido. Caminho sem fim.

Acontece que aquela praia tinha fim. Acabava em uma montanha, base militar, cortada por um canal por onde entravam enormes navios que atravessam oceanos, rodam o mundo.

Com o fim da caminhada, acabou também a calma. A dor do desespero voltou em estado bruto, seiva bruta. Sentou numa pedra, no ponto mais afastado da praia e chorou. Chorou como nunca antes chorara, como se tudo à sua volta desmoronasse. Ela não podia vislumbrar solução, saída, luz, salvação. Tinha só vontade de chorar até o corpo todo desfazer-se em lágrimas, escorrer pela areia até o mar, juntar-se a ele: alguns mililitros de água salgada ocular junto à imensidão de água salgada de todos os oceanos do mundo. Virar espuma das águas do mar, e quem sabe naquele momento, desfeito o corpo, acabaria também a dor.

Suas lágrimas por fim esvaíram-se, mas o corpo não foi junto como ela esperava. Continuava sólido, sentado sobre a pedra. Quente, curvado, sem forças, seco. Sólido de solidez despedaçada.

Outro enorme navio adentrava o canal, lentamente. Teve vontade de seguir às margens do canal, ao lado do navio, até o porto, até o fim, embarcar, ir navegando para sempre, navegando sem fim, até o fim da vida.

Outra força, porém, a puxou de volta. O cérebro acionou o botão do piloto automático. Lavou o rosto e o torso num dos chuveiros do calçadão. Voltou.

Desta vez pela calçada.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Corta-noite

No pseudo-silêncio do ônibus, à meia-luz, invade-me os pensamentos uma inoportuna sensualidade. Finjo também dormir ao mergulhar nestes pensamentos, tão impróprios de se acalentar na companhia de quase meia centena de pessoas adormecidas. Uma dor latente tamborila-me as tempôras. Não sinto sequer uma gota de sono.
Desço à plataforma da parada.
Sinto, de repente, inveja de um casal qualquer, que por ali, entre risos, discute amenidades. Não têm nada de especial, assim como não o têm as pessoas em volta. Mas compartilham uma viagem.
As viagens de ônibus sempre me foram o momento de exaltação da minha solidão, independência e excentralidade. Meu monumento atemporal.
Só e calada, sisuda, acompanham-me os fones de ouvido, os livros e algum papel em branco.
Alguns bons momentos já cheguei a compartilhar, mas nunca uma viagem de ônibus. Elas sempre ficam nos planos felizes de algum futuro inexistente.

De repente um eco do passado surge. Inquieta-me por alguns minutos, mas é em seguida esquecido. Continuo a cortar a noite, já despida das esperanças infantis. Continuo, só, a curtir as horas de pura exaltação do meu monumento, atemporal.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Escrita requer tempo. As ideias dormem calmas na cabeça. Hibernam. Ursas.
Quase todos os textos são sempre rascunhos à espera de...

sábado, 27 de junho de 2009

insustentável leveza

É simples. Toque e carinho são naturais. Corpo e corpo sempre se encaixam.
Toda casa é agradável, toda cama aconchegante. Tudo, tão logo, familiar. Pulsação. Respiração. Ser.
Não há olhar sem brilho, proximidade sem mágica, noite compartilhada perdida. Não há desgostar.
Não uma.
As pessoas, todas, especiais.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

sobre inconstância

É que ser amável e se deixar levar de repente cansa e é um saco.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

menina do interior

Galinha caipira, sopa de mandioquinha, couve, açúcar mascavo, café forte, chá de verdade, cachaça na cabaça, banana com pão.

Bão.

sábado, 20 de junho de 2009

Arde ali ninho de vaga-lumes incendiários.
Dançam ondulantes, condensados.
Magnético este ninho.
Me come os olhos, me fisga.
Magnetismo sensual.

Se de repente interrompidos de sua dança
(foi graveto inxerido atirado), sobem
assustados, em polvorosa.
Inxame ao céu.

Brincam então de pega-pega, velocidade alucinante.
Ânsia.
Ânsia de tudo por saber que em um nadinha se vão.
Correm em voltas vaga-lumes alaranjados.
Correm em voltas, se espalham, se encontram,
se beijam, se soltam, se viram,
se apagam.

Nada mais nesta noite.
Só vaga-lumes.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Barbaridade



Nós atacamos com flores, com cartazes e gritos de guerra...

... eles respondem com cacetetes e bombas.

Não dá para aceitar uma barbaridade como esta. Não dá para aceitar uma reitora que, ao invés de proteger a comunidade universitária, chama a PM para atacar professores, funcionários e estudantes.

Fora PM do campus! Abaixo Suely Vilela, diretas para reitor! Por uma nova constituinte na USP!

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Sobre posturas.

Tive muitas ótimas aulas na última semana. Nenhuma na sala de aula.

Quer saber uma das lições?
Eu sou estudante não de uma universidade particular, mas de uma universidade pública. Quem paga minha mensalidade não é meu pai, mas todos os pais e mães e filhos brasileiros (ou paulistas). Assim sendo, eu não tenho a responsabilidade apenas com o meu pai ou comigo mesma, de formar-me, pegar um diploma, fazer carreira, grana, sucesso por aí. Eu tenho responsabilidades com todos os pais e mães e filhos que me pagam a universidade.

E eu tenho todo o direito de estudar e de ter minhas aulas com qualidade e segurança. Assim como os próximos que entrarem aqui também o terão. Mas é sim responsabilidade minha, agora, garantir que esses próximos tenham tudo a que eu tenho direito hoje, e não igual ao que eu tenho, mas melhor.

Aprendi (ou compreendi), entre muitas aulas geladas esta semana, como portar-me como aluna de universidade pública. E portar-me como aluna de universidade pública não significa necessariamente aderir sempre às greves ou concordar com tudo do movimento estudantil. Significa interessar-me e comprometer-me não só com o meu futuro, mas também com a sociedade e com o futuro da universidade. Porque eu, assim como todos os outros alunos, passarei e irei embora, mas as ações que tomamos enquanto estamos aqui modificam o que será esta universidade amanhã.

Não pretendo julgar quaisquer atos/pessoas. Mas esta é a minha postura, e agirei de acordo com ela.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Menina boba. Esquece. Afasta. Olha pro outro lado. E vê se desta vez não chora!

Ok, eu sei. Há tempos você não chora mais. Passou dessa fase das lágrimas. A alma, esse tantinho, já endureceu.
Mas ainda cedes... Alma mole, menina boba. Não cede, não! Empurra, vai embora.

Menina boba, vá dormir na sua própria cama.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Cena de cinza

Em uma das muitas cenas de meu sonho, estava feliz.
Era uma boneca, com pele de louça, lábios vermelhos e olhos de vidro, mas o sangue corria em disparada nas veias e o coração batia em samba. Como boneco de ventríloco, sentava eu em seu colo, e as palavras de carinho aqueciam a louça e faziam brilhar o vidro.
A cadeira rústica que sentávamos voava. Voava correndo ao lado de uma estrada, como se fosse uma poltrona de ônibus descolada do resto do veículo, a correr sozinha. As faixas da estrada passavam aceleradas. Era tudo cinza. E a boneca tinha vida. Quente.

Desvaneceu-se o sonho. Acordei com os pés gelados.
Não mais boneca, sento-me triste, pagã, ao pé da janela, com flores no regaço.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A menina é a mãe da mulher

Perguntas e respostas de sempre ajudam a clarear escolhas para o futuro.

- Você quer entrar em um cruso de jornalismo?
- Eu que entrar na USP.

- Você quer estudar jornalismo?
- Eu quero estudar.

- Você quer trabalhar como jornalista?
- Eu quero trabalhar com algo que faça a diferença.

- Você quer ganhar dinheiro?
- Eu quero o suficiente para dar algum conforto à minha mãe, ter sempre acesso a cultura em geral e viajar.

As palavras-mestras:
"Estuda, filha, nunca pára de estudar, pra que você não acabe que nem a gente."

A correção de um pensamento:
O problema não é ter mãos de sabão, o problema é não ter perspectivas.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Primeiro amor

"Na janela banhada pela luz do Sol do fim da tarde você me abraçava, e nossos planos eram a única coisa que importava. Porque estávamos certos deles. Porque só você sabia meu segredo, e só em você eu confiava. Porque éramos um microcosmo correndo paralelamente ao mundo. Nós éramos tudo."
(25/7/2007)

Primeiro amor tem inocência e embriaguez.
Deslocamento da realidade... eis aí sua grande doçura e também sua causa mortis.

Era bom crer que éramos tudo... tem um gosto incomparável.

Melhor é agora saber que não éramos tudo e que nunca o seremos.
Quem sabe a partir daí aprendemos a ser simplesmente dois.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Aula no jardim.

1. não temer os deuses
2. não temer a morte
3. procurar o prazer nas pequenas coisas
4. o sofrimento, por maior que seja, nunca é eterno

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Extravazando emoção

Emoção que transborda pelos poros.
Felicidade que transborda pelas bordas.

Dor que faz bem.
A melhor dor que se pode sentir!
A dor que se quer sentir e se quer superar.
Superação constante. Superar sempre a si mesmo.
Ir atrás, querer mais.

Dançar: essa é a minha essência.
Não há nada, nada mesmo, que me dê tal prazer.

sábado, 25 de abril de 2009

Mas num segundo as comportas se abrem e tudo volta à tona.
Uma enxurrada de lágrimas, coleção de sorrisos, coração-bateria.
Os sentimentos exalam pelos poros da pele.
Sou de novo toda sentidora.
Sou só um grande sentir!




Obrigada, meu querido Mattheus! Obrigada por me lembrar da minha essência.
Essência de palco, de sapatilha, de pele. De tanto sentir.

Sinto agora, mesmo com toda a saudade, material, aqui, o seu abraço!

domingo, 19 de abril de 2009

Socorro!
Não estou sentindo nada!
Nem medo nem calor nem fogo,
não vai dar mais pra chorar nem pra rir.
Socorro!

Alguma alma, mesmo que penada, me entregue suas penas.
Já não sinto amor nem dor.

Já não sinto nada.
Socorro!

Alguém me dê um coração, que esse já não bate nem apanha.
Por favor!

Alguma emoção pequena.
Qualquer coisa.
Qualquer coisa que se sinta!
Em tantos sentimentos deve ter algum que sirva!
Socorro!

Alguma rua que me dê sentido,
em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada.
Socorro!

Eu já não sinto nada!
Nada...

(Socorro - Cássia Eller)

sábado, 11 de abril de 2009

As Gêmeas

Piamente à missa, no canto direito do primeiro banco da igreja, sempre ali estão a mãe e as duas filhas, gêmeas.
Vi-as crescer.
Quando pequenotas, assistiam a aulas de pintura. Sempre juntas, roupas iguais, de cores diversas. Iam também à natação, de maiô, roupão colorido, chinelos.
Foram crescendo, trocaram os shorts, saias e tamanquinhos cor-de-rosa por jeans e blusas com brilhinhos. Passaram a usar batom vermelho.
Sempre miúdas e magrinhas. Longos cabelos negros. Espessos, cacheados, presos nas metades por fivelinhas brilhantes. Rostos redondos, testas altas, narizes pequenotes, bochechas fofas, bocas bem-desenhadas.
Não são lindas, mas belas. Bonecas.
Numa festa de gala, uma vez, lá estavam, meninocas ainda (13 anos?) com vestidos rodados, de mangas bufantes e laçarotes. Pareciam meninas de cinquenta anos atrás.
Estavam ontem ali, no primeiro mesmo de sempre banco da igreja, à direita, com a mãe, algo envelhecida. Lado a lado, tamanquinhos bege, jeans com pedrinhas brilhantes, blusas estampadas com rendinhas, batom vermelho. Olhar baixo, sérias, a murmurar alguma oração da vigília pascal.
Assustou-me, porém: uma delas traz agora o cabelo rubro como cobre, algo queimado. A outra, negro como sempre.
Contaram-me que estão estudando para prestar medicina. Combina. Sérias. Estudiosas devem ser.
Não daria a elas, porém, mais que 15 anos.

Nunca soube seus nomes.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Ora, deixa-me quieta com a minha casmurrice!

terça-feira, 7 de abril de 2009

Don´t be afraid of what they say...

...who cares what cowards think anyway?



They will understand one day

one day, one day.....

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Carcomida

Literalidade é um algo perigoso.
Verdade machuca.
Fantasiá-la machuca ainda mais.

Carcome-se a si mesma.
Edifica em aço as vigas para o teu monumento
atemporal.
Trancafia a carne.
Toca os pés no chão e,

toda,
só pele,

sente

o só

agora.

segunda-feira, 23 de março de 2009

A mesa dos amigos. (jornalistas?)

Sexta na Vila. Entre chopps, conversas, risadas e afirmações de "Aquele cara ali com certeza eu leio!" os cinco amigos, com uma natural fixação por papel e caneta, resolvem divagar nas folhas de uma agenda... um texto a dez mãos.


Epifanias vãs de pessoas embriagadas. Escuto vozes, cheiros, pele. Sinto toda a energia abatendo o meu âmago, vivo.
O calor da noite parece ter seus limites contidos na roda de amigos, no espaço da mesa.
Copos a se esvaziar. Centenas de vozes, e as vozes amigas. Sorrisos nos cantos das bocas. Ouço pandorins!
Mas que são os amigos? Que são as pessoas? Estamos interligados por algo em comum? Sim? Talvez não.... Apenas estamos aqui.
Por mais que nada seja nada. Ligações, ou não, entre nós: neste momento todos somos um, e cheios de felicidade compartilhamos este momento; em meio às vozes, copos e sentimentos.
O ambiente é propício. Existe energia transcedental que nos une? Questionamos. Existe. Conflitos aparentes são diálogos fervorosos. Pensamos. O cimento da amizade é aqui.
Estamos calmos, como se nada pudesse nos afastar da força desses momentos de encontro.
Estamos aqui. Só. E além das fronteiras dessa mesa de bar o mundo gira.

... é isso aí! Dos que acreditam em milagres que possam regenerar a alma bohemia.




Com os queridos Eduardo, Clara, Victor, e - CALMA, ELE ESTÁ CHEGANDO! - Fabrício (que às vezes dá as caras lá no Sujeitos Predicados ).

sexta-feira, 20 de março de 2009

Sobre palavras.

Rabiscos de um caderno, de algum momento perdido do, não longínquo, mas tão passado, ano de 2007.

Não quero escrever obras-primas. Não tenho idade para elas.
Muito ainda hei de viver antes de escrevê-las.
Isso tudo me cansa. Igualdade disfarçada de privilégio.
Quero um abraço de ar.
Rabiscar mil palavras que acabarão no lixo me contenta, se delas puder extrair três, dois, ou mesmo um verso que me valha.
Sete palavras. Seis. Podem mudar uma existência.
Contribuir para uma vida.
São tantas assim que me vêm à mente.
Que meus lábios repetem no silêncio sem sentido
estampado na testa.
Dormem simplesmente em meu inconsciente e pulam à boca uma hora, para embalar pensamentos esquivos.
Ou só para serem repetidas, como se elas próprias tivessem prazer em se fazer murmuradas.
Se um dia eu fizer uma frase, um verso como estes,
estarei contentada.
Para que possa embalar outros lábios que murmuram
e pensamentos que viajam.

Penetra surdamente no reino
das palavras...
(seis palavras. inesquecíveis.)


Um pouco do contexto desses versos se perdeu, pelos anos, em minha memória.
Milhares de minhas palavras ainda são rabiscadas destinadas ao lixo.
Meus lábios ainda murmuram
e os pensamentos se esquivam.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Deliciosa nostalgia.

O melhor presente de todos os tempos!
A Toca tem uma vitrola!!!!!
... acho que definitivamente não vou cansar de dizer "muitos obrigadas".
Muito obrigada, Fontes!

segunda-feira, 16 de março de 2009

Regurgitofagices - parte 1

"Casa comigo que te faço a pessoa mais feliz do mundo. A mais linda, a mais amada, respeitada, cuidada... a mais bem comida. E a pessoa mais namorada do mundo e a mais casada. E a mais festas, viagens, jantares... Casa comigo que te faço a pessoa mais realizada profissionalmente. E a mais grávida e a mais mãe. E a pessoa mais primeira discussões. A pessoa mais novas brigas e as discussões de sempre. Casa comigo que te faço a pessoa mais separada do mundo. Te faço a pessoa mais solitária com um filho pra criar do mundo. A pessoa mais foi ao fundo do poço e dá a volta por cima de todas. A mais reconstruiu sua vida. A mais conheceu uma nova pessoa, a mais se apaixonou novamente... Casa comigo que te faço a pessoa mais "casa comigo que te faço a pessoa mais feliz do mundo"."
(Michel Melamed - Regurgitofagia)

"É preciso amar!
Mas sempre achamos que nosso amor é tão grande, tão forte, tão infindável, que pode passar por qualquer coisa. Que ele vai aguentar.... e por achar isso, fazemos nosso amor passar por tudo, por achar que ele vai aguentar. Acontece que não aguenta. Acontece que não é infinito, nem forjado em ferro, nem aguenta tudo, nem dura pra sempre. Amor não deve ser levado às últimas consequências. Ele não chega até lá...
Tem de ser bem cuidado. Amor é sentimento. Sentimento dos outros. Frágil.
Cuidar melhor dos amores para amar mais..."
(da peça Homemúsica, do Michel Melamed também... não necessariamente nessas palavras)

segunda-feira, 2 de março de 2009

dramas existenciais

de repente uma vontade...

de mãos dadas, pensamentos, beijinhos, cinema juntinhos, sorvete no domingo quente, namorandinhos.

ahh. que nada!
me dá logo uma breja,
uma longa conversa com as meninas
(romântica, sob as àrvores verdes e a lua bêbada),
e uma pilha de livros
que eu vou.

de cara.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Estender a mão

Você tem idéia do que é ter fome, pedir ajuda, e não ser atendido? Eu, como todos vocês que leem esse blog (acredito eu) não tinha idéia do que era isso. Não tinha idéia até passar por essa situação, no caos aéreo argentino, em julho passado.
Estávamos presos num galpão há cerca de cinco horas, sem água ou comida, sem poder sair e sem previsão de embarque. Num dado momento chegaram galões de água e tabletes de chocolate (a versão hermana das barrinhas de cereais distribuídas no nosso caos aéreo) para tentar acalmar as centenas de pessoas. Eu estava há umas oito horas sem comer e corri para tentar pegar um chocolate. Por bastante tempo fiquei com a mão estendida, entre tantas outras mãos, tentando conseguir algo, e já via com desânimo que os tabletes iam acabando e que minha mão, entre todas as outras, era sempre recusada.
Desânimo, tontura, tristeza, revolta muda e infeliz de um estômago vazio e de uma pessoa ignorada. Foi isso tudo que senti na hora - e foi uma das piores e mais humilhantes sensações pela qual já passei - se não a pior. Por fim, um bom senhor percebeu que eu estava à beira das lágrimas e prestes a desmaiar (e estava mesmo, juro!) e insistiu com o argentino dos chocolates para que me desse um tablete.
Depois que acalmei meu rombo no estômago, minha revolta muda, minhas lágrimas de nervoso e alívio, comecei a pensar naqueles que dia a dia passam fome, que dia a dia passam por essa mesma situação de pedir e não ser atendido, que provam todo o tempo dessa humilhação, tontura, desânimo, revolta muda e infeliz. Fiz então uma promessa: nunca mais recusar ajuda a quem me estendesse a mão, pedindo. Não vou ser hipócrita e dizer que desde então ajudei a todos aqueles que me pediram alguma coisa (ou eu já teria falido também, afinal de contas) mas na medida do possível e no alcance do meus trocados, o fiz.

Agora vieram as inscrições do Redigir. É na verdade uma alegria fazer os plantões. Em um deles uma inscrita conversou comigo por alguns minutos - e neles me contou boa parte de sua vida, e me fez perceber o quanto faz diferença para alguns, para ela, uma simples, pequena oportunidade. Para alguns, essa simples oportunidade de um curso pode ter uma importância bem maior do que talvez possamos imaginar. Porque não é apenas um curso - mas também atenção que é dada, para pessoas que em geral passam invisíveis para grande parte da "sociedade", das classes A e B, dos "intelectuais" ...
Algumas pessoas dizem que fazemos um sacrifício adimirável, tocando pra frente o Redigir. "Esses meninos aí valem ouro!"
Não, não sou de ouro nem faço um sacrifício. Faço com alegria. Mais do que sentir estar fazendo o que é certo, me sinto feliz. Feliz por ver as pessoas felizes, esperançosas com uma oportunidade que lhes é dada. Feliz, porque assim como é melhor dar presente do que receber, mais bem nos faz ajudar do que ser ajudado. Presente, por fim, quem ganha sou eu.
Será que era só um sonho? Só um lindo sonho de pontas?
Será que simplesmente acabou, passou, e sobrará, depois só a admiração?

Que verdade se esconde naquele grande envelope lacrado?

Espero, sem pressa. Mas com muita, muita pressa.

Espero só... e que mais posso fazer se não esperar?

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Casa.

Era um fim de tarde, e entre o caos da mudança, sozinha no apartamento, parei para ver o sol se pôr. Pois é tão linda a vista da minha janela. Aqui, bem aqui, bem embaixo do meu nariz, esse grande verde, grandes árvores, algumas recobertas de flores roxas. Ali, (uma ali ainda perto), a marginal, onde além dos incessantes carros, pode-se ver passar devagar o trem, em tamanho de apenas trenzinho de brinquedo, vivamente vermelho e azul. Ali, depois, os prédios. São de todos os jeitos: os bem altos, espelhados; os brancos, avarandados; os baixos, só janelas, mais humildes; os puros cinza-concreto, sérios, públicos, entremeados de casinhas também. Diversas antenas, um flash a piscar, as luzes da cidade começam a se acender.
E, além... ora, se não é incrível! Os prédios e casas não continuam até o além. Não se perdem da vista, no infinito, na cidade sem fim. Eles cessam ali, e o que há além são morros, verdes morros que aparecem em pesadas massas negras. É esta longa e ondulante serra meu aconchego: ter a impressão, falsa, eu sei, mas tão vívida, de que a cidade se acaba ali, nos morros, onde a vista pode facilmente alcançar, e reconhecer aqui e ali a moradia de um amigo, a faculdade... (Tão semelhante a uma outra vista que tinha da janela de uma cozinha... São José se desdobrando, subidas e descidas, aqui a casa da vó, ali a igreja matriz, lá a escola, depois o clube... e acabando ali, além, nos ondulantes morros de verdes mil.)
Oh! E o infinito além aqui está acima dos morros, depois do Pico do Jaraguá, acima disso tudo, quem diria! O céu! Em toda sua contínua imensidão, e não recortado por fios e prédios. Azul. Nuvens brancas se espalham, inebriantes, entre reflexos cor-de-rosa e o pôr-do-sol alaranjado à esquerda. A lua, minguante e fininha, semi-transparente, já dá as caras ali em cima. Agora espero, esperançosa. Quem sabe mais tarde seja possível até ver (raridade das raridades) estrelas!
Sinto-me sortuda, feliz, aconchegada. Em casa. Minha casa.
Minha primeira própria casa.

Ah! Sou sim, muito sortuda! Duvido que alguém tenha uma vista de São Paulo tão bucólica quanto esta da minha janela!

ps.: Depois as estrelas apareceram sim (meio tímidas, concordo, mas apareceram). E lá longe, subindo o morro, uma porção de luzinhas tremulejavam, lusco-fuscamente (depois eu me preocupo com o fato de serem, na verdade, as luzes de uma favela, mas deixa no momento eu me encantar ao pensar em como elas parecem chamas de uma porção de velinhas tremendo ao longe). E o amanhecer é quase tão bonito quanto o pôr-do-sol. Quem sabe um dia eu chegue a tempo de ver uma aurora...

domingo, 25 de janeiro de 2009

À minha mãe.

Dizem que somos iguais. Pouco mais de um ano atrás eu odiaria ouvir isso. Pois agora me alegro. Sim, temos muito, muito, muito em comum; sim, temos nossas diferenças e estranhamentos também; sim, não damos certo morando juntas; mas sim, amo encontrá-la assim, de visita. Aceitação, compreensão... até que eu gosto, e muito, dessa tal de certa maturidade.

É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar mais depois de ter amado. (depois me lembro o escritor dessa frase - escritor bem sabido dessa vida, podes crer!)
Saudades já, mamãe! Amo você.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Embaile

Ok, eu posso ficar dois meses sem fazer um passo de ballet (à força - muita força e muita dor). Mas minha cabeça não fica longe daquilo que amo:

www.embaile.blogspot.com
É que tem dia em que a lágrima cresce, que o corpo padece e a gente entristece. Tem dia que a gente merece, porque nem adianta fazer tanta prece. Acalmar com báslsamo o buraco da alma, dar a ela o que ela carece. Tira-se o papel metalizado, colorido, do peso momentaneamente se esquece, mordida atrás de mordida que o coração pouco a pouco se aquece. Abraço de chocolate.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

De volta ao dia-a-dia:

Edgar Degas - Dance Class at the Opera on Le Peletier Str.,1872 - Musee d'Orsay, Paris, France

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Essência

No alto de um morro, de pasto, de pés descalços na terra bem vermelha. Na minha essência está a música, e é um batuque de cordel que vem, são os pés a bater no chão que vem, é a dança desvairada, louca, com sorriso, gritar e tontura. (tontura de a visão branquear, branquear, branquear...) É a poeira de um chão negro, é a sujeira e os pés descalços e o suor de corpos que se encontram, uns, outros, todos, corpo contra corpo, silêncio, respiração sincronizada, um corpo só, um bicho só respirando juntos em dois. Arrepio que corre pele, água que empapa olhos, respiração acelerada que se tenta em vão cuidar. São as pedras de mariazinha, mariazinha que nem merece um "m" maiúsculo entre todas as outras marias. A ciranda das saias rodadas, os meninos encantados, pele e osso que só. Saudade sem tamanho. Uma guerra na essência, antes um massacre, genocídio. Ah, lá no alto do morro o Bom Jesus Conselheiro, Joana Imaginária, marias-velhas e mariazinhas e meninos encantados sem fim. Um menino, dois homens feitos e um velho, à frente dos quais rugiam dois mil soldados. Igrômetros singulares, página vazia. Poesia da terra, de terra, de lona velha, guardada, cheia de cheia de terra, de pedra, de sangue e suor. Ave Maria gratia plena, dominos tecum, benedicta tu in mulieribus... Cheiro de maquiagem antiga, batom rubro, grampos dourados, pó. Pó por todos os lados, nas grandes saias guardadas, no tecido mofado, nas fotos rasgadas, nas rendas antigas. Era uma janela ali, janela com grades, armário antropomórfico, e uma respiração de dar arrepios. Tão grandes arrepios, tão grandes. Ahhhhhhhhhhh.
Uma tempestade. Trovão. Clarões. Vento sem fim. Vontade de sair. De ir. Sumir. Inquietação. Inquietalma. Chove. (ninguém dorme)


Dos Três Mal-Amados Palavras de Joaquim - O Cordel do Fogo Encantado:

"O amor comeu meu nome,
minha identidade,
meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia,
meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas,
meus lenços e minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos,
o número de meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura,
meu peso,
a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu minha paz e minha guerra,
meu dia e minha noite,
meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça,
meu medo da morte."

domingo, 11 de janeiro de 2009

Visões

Pela rua úmida da chuva de um dia inteiro seguia aquele estranho, triste cortejo. Um sem-número de moças cabisbaixas, agarradas aos braços umas das outras, caminhando lentamente, sem vontade, passos trêmulos. Todas, belos, alvos vestidos, cozidos das mais finas rendas e bordados, para recobrir os castos corpos naquele dia que deveria ser o mais especial.
O som das inúmeras saias, de tantos tecidos roçando uns nos outros, passo a passo, era o único que se ouvia, além das tímidas réstias de choros abafadas, e das últimas águas que gotejavam dos beirais de telhados. Passo a passo, as barras branquíssimas daqueles vestidos iam tornando-se marrons, invadidas de barro. Sobre a cabeça de cada moça, sobre cada belo vestido de noiva, um véu negro de luto. Rosários sem fim a se desfiar.
Pobres virgens de sonhos despedaçados, tornadas todas, num golpe só, viúvas, pouco antes de subirem ao altar.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Às cucuias com a má-informação

Um engraçadinho fizera-me acreditar que a Dona Crase tinha ido para as cucuias com a Reforma Ortográfica. Ainda bem que não foi. Eu gosto de uma Dona Crase bem empregada.

Terra do Nunca

Sim. há coisas que nunca, nunca vão mudar.
Tudo aqui, o mesmo. Há vinte anos, o mesmo. Nos próximos vinte também, o mesmo.
Os rostos envelhecem, ganham rugas e pés-de-galinha. As crianças se tornam moças. As moças se tornam mulheres casadas, com aliança no dedo, barriga a se formar, mau-humor, e um quarto próprio. Novas crianças, vindas nem se sabe de onde, surgem (sempre, sempre, uma criança diferente a brincar na varanda). Percebe-se a passagem do tempo pelas pessoas, somente. Todo o resto, imutável.
Cor própria tem este lugar. Marrom. Marrom escuro da terra vermelha, transformada em barro pastoso, que tudo impregna. O chão de cimento cru, tornado marrom pela terra que entra nos pés, pelo tempo. Marrom as portas, os móveis, a geladeira, os azulejos do sofá de cimento quase inutilizado da sala, os pratos e canecas de vidro em que se come. De marrom são pintadas as paredes até a metade. E o vermelhão. Vermelhão do chão da varanda, liso, escuro, frio, bom de se pisar descalço. Vermelhão também das muretas da varanda, boas de se sentar, as costas apoiadas nas vigas de madeira - tronco rústico - para almoçar, o prato fundo bem cheio apoiado na almofada sobre as pernas. Vermelhão do fogão de lenha, sempre uma brasa a arder, sempre panelas repletas, sempre quente a cozinha, sempre água aquecida para o banho na serpentina.
Imutável essa rotina. Cedo, cedinho se levanta. Às seis já não há sono. Café, bolo, pão, manteiga, queijo fresco (aquele feito mesmo ontem, que estava a secar na estante da varanda), biscoito de polvilho e biscoito doce, rosquinhas de côco que nunca se há de experimentar tão boas em outro lugar. Dia e noite a TV, na varanda, incansável, sempre a tagarelar sem pausa e sem pedir água. É a mesma de sempre velha e boa TV, ligada à mesma de sempre velha e boa antena parabólica, sintonizada na mesma de sempre velha e (boa?) Rede Globo de Televisão.
Trabalho na casa há sempre a se fazer. Varre-se o chão com a grande vassoura de palha, lava-se a varanda com baldes e um latão cortado pela metade, repleto d'água. Na cozinha, sempre louça a lavar, comida a refogar, bolo ou pão a assar, doce no tacho a borbulhar, queijo na esteira a coalhar. E, é claro, o tempo todo café novo a se coar. As vozes das mulheres trabalhando enchem a casa. Falam alto, no sotaque arrastado de se comer letras. Falam das coisas da casa, falam dos conhecidos, falam das novelas e artistas da TV, danam com as crianças. Solta-se uma piada qualquer e o lugar todo se enche de risos. Não há espaço aqui para o acanhamento ou pouco falar. As crianças logo cedo aprender a tagarelar, sobre tudo e com todos, como fazem os adultos. Importante lição é saber danar com os outros. Gritar, soltar ameaças vazias, troçar com um e com outro para causar a gargalhada geral.
"Uai, minina, acord'ireito, abre essis'óio."
"Don'Ana, quant's copo di arroiz qui'eu afogo?"
"Má ondié qui foi a diaba daque'a minina? Ondié qui e'a lavô us pé? Má si foi no banheiro e'a vai levar uma burduada!"
"Foi não, e'a lavô us pé lá fora nu tanqui, num foi Gabriele?"
Muito mais bichos do que gente vivem aqui. Além dos dois cachorros e das vacas e cavalos nos pastos, tudo em volta da casa é cheio de vida. Os passarinhos cantam o dia todo, infinidade de tons e diferentes sons. Eles vêm mesmo pertinho, comendo as mangas podres que se espalham no chão sob as árvores todas, ou então entram furtivos na cozinha, a comer os farelos sobre as mesas. Um ali foge para salvar a vida, que o cachorro maior dera de querer brincar com ele à boca. Outro, pequenino filhote, aceita o dedo como puleiro por alguns minutos, proximidade mágica, até que decide voar de volta à magueira. As galinhas e o galo ficam soltos, bicando e andando aqui e acolá, por todo o entorno da casa. O dia inteiro as moscas e mosquitões pretos pairam por toda parte, sentando-se nos cachorros adormecidos, nos pés das gentes, nas comidas destapadas. Vez por outra, um pouquinho adiante, no caminho para o barracão ou para o curral, encontra-se uma cobra, e corre para lá o fazendeiro ou sua mulher, pedaço de pau à mão para matá-la. Essa daí era só uma cobrinha d'água, mas a ela se seguem os causos, da cascavel na qual quase se pisou, só um pouquinho ali à frente, da coral que por pouco não pegou aquele mulequinho que andava por ali, do escorpião que foi encontrado com susto no banheirinho lá de fora.
Você não tem fome, mas soltam lá da cozinha: "Tá pronto, vem almoçá!". E como não antender, mesmo que a fome não atenda, se no fogão de lenha borbulham as panelas velhas de ferro, com a comida boa como sempre e como nunca, que se encontra só aqui? Prato fundo, de vidro marrom, salada, tomate, pepino, legumes cozidos, com cor, tanta cor, que nunca se viu chuchu mais verdinho ou mandioquinha tão amarela quanto esses. Arroz, feijão. Ah, esse feijão! Carne, ovo, macarrão, maionese. Tudo bem temperadinho, tempero mineiro, com pimenta. Uma jarra grande, bem grande, plástico azul, de suco. De acerola, de tamarindo, de fruta de verdade que você ainda sente os pedacinhos. Sobremesa. Doce de leite, de goiaba, de banana, de caju, de figo. Para terminar, o café novo, acabou de sair. Isso é também imutável: não há como passar aqui uns dias, uma semana, sem ganhar a mais uns quilos.
Depois do almoço, da louça lavada, do jornal acabado, todos de repente somem, ao trabalho, à sesta ou à cidade de passeio, e a cozinha fica quieta, vazia e escura, somente com uma brasinha ainda tímida a arder e a garrafa de café que dura por todo o sempre.
O Sol queima e esquenta. De bicicleta desce-se, estradinha de terra pelo pasto verdinho, até a represa. Uma imensidão de calmaria, de céu e água. Silêncio. A água é verde vista de longe, e transparente de dentro. Nada-se longe, fundo, até aquela árvore lá, vê? E de lá ainda avista-se o fundo, de terra vermelha e conchinhas brancas, bem abaixo de seus pés. Subir nessa árvore, conversar sem pressa nos galhos de uma árvore cercada d'água... ah! Morna, morna, quente. Boiar de costas, com os pensamentos perdidos na imensidão do céu azul, das formas das nuvens.
À tardinha vem a chuva. Primeiro, na verdade, o vento, e a correria para se tirar aquela imensidão de tapetes do varal. Então a chuva. Forte, forte, abriga-se na varanda, mas de repente as telhas velhas não dão mais conta e na varanda passa a chovar também. Passa-se à cozinha, onde o jantar está para ficar pronto. À noite torna-se para o jantar, para a TV e a falação. Os cachorros deitam-se preguiçosos no meio dos pés das gentes da varanda. Os besouros e mais uma infinidade de bichinhos de asas voam ao redor das luzes, batendo insistentemente na tela da TV e nas pessoas, espalhando-se pelo chão. Atraídos pela refeição farta, os sapos coaxam pertinho, é só olhar para além da muretinha e se avistar um, ir até a varanda dos tanques e quase pisar em dois, sair na porta da cozinha e encontrar mais um, logo ali no degrau. Às vezes, um mais inxerido vem se instalar embaixo de um dos bancos onde as gentes sentam, ou sob as geladeiras da varanda, para interesse das crianças e brinquedo cruel dos cachorros. Terminada novamente a janta, as louças, a novela. Os últimos causos são contados em volta da mesa, enquanto mingua a fila do banheiro para se escovar os dentes. Enfim todos prontos, sonolentos, vão para a cama. Sobra só o cantar das cigarras e o coaxar dos sapos, que tornam-se, enfim, os reis da varanda.
Aqui, sempre esse aqui, imutável. E chegar depois de ano e meio, e constatar que tudo continua no mesmo lugar, do mesmo jeito que sempre foi, de que sempre se lembra, os mesmos gostos, cheiros, sons. Um aconchego bom. Aqui se tem a sensação de uma imobilidade do tempo, mas ela não é esmagadora, não. É antes uma terra encantada, em que nada, nunca, nunca vai mudar. Aqui, esse sempre aqui, é a minha terra do nunca.


"Ô Mariana, sabe o filho do juiz? E'e troxe p'á cá a bicicleta, o computador, mai e'e não brinca. E'e é gente pequena mai parece gente grande."
"E gente grande é como?"
"Gente grande é chata."
"E eu, sou gente pequena ou gente grande?"
"Ocê é gente pequena. Cê brinca, anda de bicicleta..."


... sorri, feliz. E continuei a pedalar pela estradinha cheia de lama. A menina grande na bicicleta com a menina pequena na garupa, e os dois cachorros correndo à frente, pelo pasto.
Muito me alegra agradar às gentes pequenas.