segunda-feira, 24 de agosto de 2009

quilometragem

Velha Amiga
(Cachorro Grande)

Você tem que olhar a estrada
Com uma cara cansada
Como uma velha amiga
Que você já não aguenta mais

Estou aqui de passagem
A vida é uma mala pronta pra viagem
Minha cabeça é minha bagagem
E a estrada é uma velha amiga

Com quem você pode contar?
Velha amiga

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Revirentranha

"Um prisioneiro algemado, colocado na guilhotina, ainda não está morto. Apenas um instante o separa da morte, o instante da vida em que ele deseja intensamente já estar morto." (Sartre)

(Mãe com filho morto - Portinari)

"Agora ele dorme. Ele dorme. Há muito sou uma emissária e trago em meus braços um menino encantado. Eu preciso ser breve, pois logo o menino pode acordar."
(trecho de Os Sons Antigos de Águas Apagadas - Lúcia Vitto)

... ahh, divagações junto de um café. Quem dera fosse possível financiar a paz mundial.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

numa bolha de sabão...

Cupido - Maria Rita
(Composição: Cláudio Lins)

Eu vi quando você me viu
Seus olhos pousaram nos meus
Num arrepio sutil
Eu vi... pois é, eu reparei
Você me tirou pra dançar
Sem nunca sair do lugar
Sem botar os pés no chão
Sem música pra acompanhar

Foi só por um segundo
Todo o tempo do mundo
E o mundo todo se perdeu

Eu vi quando você me viu
Seus olhos buscaram nos meus
O mesmo pecado febril
Eu vi... pois é, eu reparei
Você me tirou todo o ar
Pra que eu pudesse respirar
Eu sei que ninguém percebeu
Foi só você e eu

Foi só por um segundo
Todo o tempo do mundo
E o mundo todo se perdeu
Ficou só você eu eu

Quando você me viu...

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Arrebentação

Desceu os degraus dos cinco lances de escada tentando manter a calma, mas não só os pés tremiam: algo bem maior em seu peito parecia causar-lhe convulsões internas.

Chegou à rua. Passara por ali apenas uma vez, à noite, e tudo lhe era estranho. Tentava controlar os passos, mas eles aceleravam-se por vontade própria. Os olhos, quentes, ardiam.

Ao dobrar a esquina, não mais podendo ser observada, a caminhada acelerada tornou-se corrida desembalada. Ela não tinha controle sobre seu corpo. Não sabia também o porquê, mas tinha necessidade de correr.

Os olhos queimavam feito brasas. Como nosso corpo, que quando quente produz suor para se refrescar, seus olhos produziram lágrimas para aplacar o ardor. Mas elas estavam longe de serem frescas. Rolavam quentes, pelo rosto quente, pela manhã quente.

Não conhecia o caminho, mas deixava-se levar pela intuição: a maresia a atraía. Corria pelas calçadas e atravessava ruas às cegas, guiada simplesmente pela umidade salgada do ar que ia aumentando.

Chegou por fim à praia. Atravessou a avenida, o calçadão, tocou os pés na areia. Correu até a beira da água, pôs-se a caminhar.

Sem o desespero de antes, suas lágrimas iam juntar-se à agua do mar, lenta e continuamente. Dúvida, medo, confusão ainda se entrelaçavam dolorosamente em seu peito. Mas pisar a areia úmida, continuamente, continuamente, continuamente, era como uma anestesia mental, calmante de tarja preta. Andar sem destino, sem propósito, sem vontade de chegar a lugar algum ou principalmente sem vontade de voltar. Continuar infinitamente caminhando pelo desconhecido. Caminho sem fim.

Acontece que aquela praia tinha fim. Acabava em uma montanha, base militar, cortada por um canal por onde entravam enormes navios que atravessam oceanos, rodam o mundo.

Com o fim da caminhada, acabou também a calma. A dor do desespero voltou em estado bruto, seiva bruta. Sentou numa pedra, no ponto mais afastado da praia e chorou. Chorou como nunca antes chorara, como se tudo à sua volta desmoronasse. Ela não podia vislumbrar solução, saída, luz, salvação. Tinha só vontade de chorar até o corpo todo desfazer-se em lágrimas, escorrer pela areia até o mar, juntar-se a ele: alguns mililitros de água salgada ocular junto à imensidão de água salgada de todos os oceanos do mundo. Virar espuma das águas do mar, e quem sabe naquele momento, desfeito o corpo, acabaria também a dor.

Suas lágrimas por fim esvaíram-se, mas o corpo não foi junto como ela esperava. Continuava sólido, sentado sobre a pedra. Quente, curvado, sem forças, seco. Sólido de solidez despedaçada.

Outro enorme navio adentrava o canal, lentamente. Teve vontade de seguir às margens do canal, ao lado do navio, até o porto, até o fim, embarcar, ir navegando para sempre, navegando sem fim, até o fim da vida.

Outra força, porém, a puxou de volta. O cérebro acionou o botão do piloto automático. Lavou o rosto e o torso num dos chuveiros do calçadão. Voltou.

Desta vez pela calçada.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Corta-noite

No pseudo-silêncio do ônibus, à meia-luz, invade-me os pensamentos uma inoportuna sensualidade. Finjo também dormir ao mergulhar nestes pensamentos, tão impróprios de se acalentar na companhia de quase meia centena de pessoas adormecidas. Uma dor latente tamborila-me as tempôras. Não sinto sequer uma gota de sono.
Desço à plataforma da parada.
Sinto, de repente, inveja de um casal qualquer, que por ali, entre risos, discute amenidades. Não têm nada de especial, assim como não o têm as pessoas em volta. Mas compartilham uma viagem.
As viagens de ônibus sempre me foram o momento de exaltação da minha solidão, independência e excentralidade. Meu monumento atemporal.
Só e calada, sisuda, acompanham-me os fones de ouvido, os livros e algum papel em branco.
Alguns bons momentos já cheguei a compartilhar, mas nunca uma viagem de ônibus. Elas sempre ficam nos planos felizes de algum futuro inexistente.

De repente um eco do passado surge. Inquieta-me por alguns minutos, mas é em seguida esquecido. Continuo a cortar a noite, já despida das esperanças infantis. Continuo, só, a curtir as horas de pura exaltação do meu monumento, atemporal.