Ela guardava rebanhos de ovelhas em alguma montanha da Córdoba, Andaluzia. Oito anos, e seu pai perguntou-lhe:
"Assunpción, quieres ir a Brasil?"
"Si en Brasil no hay ovejas, vámonos."
Assim chegou ao Porto de Santos em 1892, em um navio ignorado, minha bisavó, Assunpción Brigida Gimenez, trazendo com ela duas pequenas relíquias de menina: uma pequena virgem de aço, Nossa Senhora de Mascareñas, bastante parecida com Nossa Senhora de Aparecida, e seu par de castanholas.
Viveu em fazendas, casou-se três vezes. Não cuidou mais de ovelhas mas passou por várias dificuldades. Felizmente, deixou a Espanha antes da guerra civil.
Nunca falou português. Vinha a minha tia, falar com a avó:
"Abuelita, estamos en Brasil, tenemos que hablar en portugues."
"Abuelita, estamos en Brasil, tenemos que hablar en portugues."
"Yo no hablo portugues. Hablo en español, quien lo entiende, bueno, aquellos que no lo entienden, !que se jodan!"
E assim viveu até cerca de oitenta anos, com os cinco filhos, os três maridos (porque as espanholas são calientes), sem jamais falar uma palavra em português. Eu sempre a imagino sentada em sua cadeira num terraço de fazenda, xales sobre o vestido, longos cabelos negros em trança. Ela cantava e tocava castanholas de sua cadeira para a neta querida.
E finalmente, quando vi uma foto sua, lá estava minha bisvó Assunpción sentada em sua cadeira, rodeada pelos cinco filhos, com os cabelos presos para trás numa trança. O xale colocado nas costas da cadeira.
A filha mais nova de Assunpción, Trindade Gimenez Junqueira, minha avó. Era conhecida só por Nena. Para mim, vovó Nena. Contam as histórias dos parentes que ela fora uma grande mulher, forte, trabalhadora, etc. Eu a conheci só no finzinho da vida. Sofrera vários derrames cerebrais, tinha a metade direita do corpo paralisada. Seu quarto, em casa, era como a enfermaria de um hospital, e por isso eu, menina, não gostava de ficar por lá. Quando entrava e me aproximava de sua cama, ela falava com a voz fraquinha, com dificuldade as palavras saíam: "minha netinha!". E era tudo.
Sentada na cadeira de rodas, tinha sempre um guardanapo na mão esquerda, que movia incessantemente para a frente e para trás, movimentos pequeninos e rápidos. Eu sempre me perguntava por quê ela movia assim o guardanapo. Hoje penso o quanto angustiante é não poder mover-se, e aquele sendo o único pequeno movimento possível, ela o repetiasem cessar.
Minha avó, quando jovem, dançava tango. Um dia, menina, encontrei um CD seu, de capa vermelha, Julio Iglesias. "Vovó, vou colocar uma música pra senhora." Coloquei a primeira música e ela, sem falar nada, silenciosamente chorou. Ela, que nunca parecia manifestar emoções aos meus olhos, tinha pequenos riachos descendo pelos rosto. Eu, que não gostava muito de sua silenciosa e inquietante companhia, sentei em seu colo, na cadeira de rodas, e colada a seu rosto via as lágrimas rolarem como rios. Sem palavras. Só a música. Aquela música que na época nada me dizia.
Gostaria hoje que aquela menina, eu-ontem, fosse mais adulta, que entendesse mais, que sentasse mais no colo de sua avó ao invés de evitar seu quarto. Gostaria hoje de poder dizer-lhe "vovó, agora eu também danço tango" e poder contar-lhe como um dia, inesperadamente, um menino tirou-me para dançar e contar-lhe como aprendi a dançar e como aprendi a gostar e contar-lhe como hoje eu também me emociono com as músicas que a emocionavam.
Gosatria dizer-lhe: "Vovó, mesmo sem saber segui seus passos."