quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Arrebentação

Desceu os degraus dos cinco lances de escada tentando manter a calma, mas não só os pés tremiam: algo bem maior em seu peito parecia causar-lhe convulsões internas.

Chegou à rua. Passara por ali apenas uma vez, à noite, e tudo lhe era estranho. Tentava controlar os passos, mas eles aceleravam-se por vontade própria. Os olhos, quentes, ardiam.

Ao dobrar a esquina, não mais podendo ser observada, a caminhada acelerada tornou-se corrida desembalada. Ela não tinha controle sobre seu corpo. Não sabia também o porquê, mas tinha necessidade de correr.

Os olhos queimavam feito brasas. Como nosso corpo, que quando quente produz suor para se refrescar, seus olhos produziram lágrimas para aplacar o ardor. Mas elas estavam longe de serem frescas. Rolavam quentes, pelo rosto quente, pela manhã quente.

Não conhecia o caminho, mas deixava-se levar pela intuição: a maresia a atraía. Corria pelas calçadas e atravessava ruas às cegas, guiada simplesmente pela umidade salgada do ar que ia aumentando.

Chegou por fim à praia. Atravessou a avenida, o calçadão, tocou os pés na areia. Correu até a beira da água, pôs-se a caminhar.

Sem o desespero de antes, suas lágrimas iam juntar-se à agua do mar, lenta e continuamente. Dúvida, medo, confusão ainda se entrelaçavam dolorosamente em seu peito. Mas pisar a areia úmida, continuamente, continuamente, continuamente, era como uma anestesia mental, calmante de tarja preta. Andar sem destino, sem propósito, sem vontade de chegar a lugar algum ou principalmente sem vontade de voltar. Continuar infinitamente caminhando pelo desconhecido. Caminho sem fim.

Acontece que aquela praia tinha fim. Acabava em uma montanha, base militar, cortada por um canal por onde entravam enormes navios que atravessam oceanos, rodam o mundo.

Com o fim da caminhada, acabou também a calma. A dor do desespero voltou em estado bruto, seiva bruta. Sentou numa pedra, no ponto mais afastado da praia e chorou. Chorou como nunca antes chorara, como se tudo à sua volta desmoronasse. Ela não podia vislumbrar solução, saída, luz, salvação. Tinha só vontade de chorar até o corpo todo desfazer-se em lágrimas, escorrer pela areia até o mar, juntar-se a ele: alguns mililitros de água salgada ocular junto à imensidão de água salgada de todos os oceanos do mundo. Virar espuma das águas do mar, e quem sabe naquele momento, desfeito o corpo, acabaria também a dor.

Suas lágrimas por fim esvaíram-se, mas o corpo não foi junto como ela esperava. Continuava sólido, sentado sobre a pedra. Quente, curvado, sem forças, seco. Sólido de solidez despedaçada.

Outro enorme navio adentrava o canal, lentamente. Teve vontade de seguir às margens do canal, ao lado do navio, até o porto, até o fim, embarcar, ir navegando para sempre, navegando sem fim, até o fim da vida.

Outra força, porém, a puxou de volta. O cérebro acionou o botão do piloto automático. Lavou o rosto e o torso num dos chuveiros do calçadão. Voltou.

Desta vez pela calçada.

Um comentário:

Tulio Bucchioni disse...

Esses momentos são tão sofríveis, tão desesperadores...mas, ao mesmo tempo, tão importantes, tão conhecedores de si mesmo...sempre penso que são nessas experiências desconexas e sem sentido os momentos mais sinceros, em que, paradoxalmente, nos sentimos mais vivos...

parabéns, lindo texto!