domingo, 25 de janeiro de 2009

À minha mãe.

Dizem que somos iguais. Pouco mais de um ano atrás eu odiaria ouvir isso. Pois agora me alegro. Sim, temos muito, muito, muito em comum; sim, temos nossas diferenças e estranhamentos também; sim, não damos certo morando juntas; mas sim, amo encontrá-la assim, de visita. Aceitação, compreensão... até que eu gosto, e muito, dessa tal de certa maturidade.

É preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar mais depois de ter amado. (depois me lembro o escritor dessa frase - escritor bem sabido dessa vida, podes crer!)
Saudades já, mamãe! Amo você.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Embaile

Ok, eu posso ficar dois meses sem fazer um passo de ballet (à força - muita força e muita dor). Mas minha cabeça não fica longe daquilo que amo:

www.embaile.blogspot.com
É que tem dia em que a lágrima cresce, que o corpo padece e a gente entristece. Tem dia que a gente merece, porque nem adianta fazer tanta prece. Acalmar com báslsamo o buraco da alma, dar a ela o que ela carece. Tira-se o papel metalizado, colorido, do peso momentaneamente se esquece, mordida atrás de mordida que o coração pouco a pouco se aquece. Abraço de chocolate.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

De volta ao dia-a-dia:

Edgar Degas - Dance Class at the Opera on Le Peletier Str.,1872 - Musee d'Orsay, Paris, France

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Essência

No alto de um morro, de pasto, de pés descalços na terra bem vermelha. Na minha essência está a música, e é um batuque de cordel que vem, são os pés a bater no chão que vem, é a dança desvairada, louca, com sorriso, gritar e tontura. (tontura de a visão branquear, branquear, branquear...) É a poeira de um chão negro, é a sujeira e os pés descalços e o suor de corpos que se encontram, uns, outros, todos, corpo contra corpo, silêncio, respiração sincronizada, um corpo só, um bicho só respirando juntos em dois. Arrepio que corre pele, água que empapa olhos, respiração acelerada que se tenta em vão cuidar. São as pedras de mariazinha, mariazinha que nem merece um "m" maiúsculo entre todas as outras marias. A ciranda das saias rodadas, os meninos encantados, pele e osso que só. Saudade sem tamanho. Uma guerra na essência, antes um massacre, genocídio. Ah, lá no alto do morro o Bom Jesus Conselheiro, Joana Imaginária, marias-velhas e mariazinhas e meninos encantados sem fim. Um menino, dois homens feitos e um velho, à frente dos quais rugiam dois mil soldados. Igrômetros singulares, página vazia. Poesia da terra, de terra, de lona velha, guardada, cheia de cheia de terra, de pedra, de sangue e suor. Ave Maria gratia plena, dominos tecum, benedicta tu in mulieribus... Cheiro de maquiagem antiga, batom rubro, grampos dourados, pó. Pó por todos os lados, nas grandes saias guardadas, no tecido mofado, nas fotos rasgadas, nas rendas antigas. Era uma janela ali, janela com grades, armário antropomórfico, e uma respiração de dar arrepios. Tão grandes arrepios, tão grandes. Ahhhhhhhhhhh.
Uma tempestade. Trovão. Clarões. Vento sem fim. Vontade de sair. De ir. Sumir. Inquietação. Inquietalma. Chove. (ninguém dorme)


Dos Três Mal-Amados Palavras de Joaquim - O Cordel do Fogo Encantado:

"O amor comeu meu nome,
minha identidade,
meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia,
meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas,
meus lenços e minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos,
o número de meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura,
meu peso,
a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu minha paz e minha guerra,
meu dia e minha noite,
meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça,
meu medo da morte."

domingo, 11 de janeiro de 2009

Visões

Pela rua úmida da chuva de um dia inteiro seguia aquele estranho, triste cortejo. Um sem-número de moças cabisbaixas, agarradas aos braços umas das outras, caminhando lentamente, sem vontade, passos trêmulos. Todas, belos, alvos vestidos, cozidos das mais finas rendas e bordados, para recobrir os castos corpos naquele dia que deveria ser o mais especial.
O som das inúmeras saias, de tantos tecidos roçando uns nos outros, passo a passo, era o único que se ouvia, além das tímidas réstias de choros abafadas, e das últimas águas que gotejavam dos beirais de telhados. Passo a passo, as barras branquíssimas daqueles vestidos iam tornando-se marrons, invadidas de barro. Sobre a cabeça de cada moça, sobre cada belo vestido de noiva, um véu negro de luto. Rosários sem fim a se desfiar.
Pobres virgens de sonhos despedaçados, tornadas todas, num golpe só, viúvas, pouco antes de subirem ao altar.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Às cucuias com a má-informação

Um engraçadinho fizera-me acreditar que a Dona Crase tinha ido para as cucuias com a Reforma Ortográfica. Ainda bem que não foi. Eu gosto de uma Dona Crase bem empregada.

Terra do Nunca

Sim. há coisas que nunca, nunca vão mudar.
Tudo aqui, o mesmo. Há vinte anos, o mesmo. Nos próximos vinte também, o mesmo.
Os rostos envelhecem, ganham rugas e pés-de-galinha. As crianças se tornam moças. As moças se tornam mulheres casadas, com aliança no dedo, barriga a se formar, mau-humor, e um quarto próprio. Novas crianças, vindas nem se sabe de onde, surgem (sempre, sempre, uma criança diferente a brincar na varanda). Percebe-se a passagem do tempo pelas pessoas, somente. Todo o resto, imutável.
Cor própria tem este lugar. Marrom. Marrom escuro da terra vermelha, transformada em barro pastoso, que tudo impregna. O chão de cimento cru, tornado marrom pela terra que entra nos pés, pelo tempo. Marrom as portas, os móveis, a geladeira, os azulejos do sofá de cimento quase inutilizado da sala, os pratos e canecas de vidro em que se come. De marrom são pintadas as paredes até a metade. E o vermelhão. Vermelhão do chão da varanda, liso, escuro, frio, bom de se pisar descalço. Vermelhão também das muretas da varanda, boas de se sentar, as costas apoiadas nas vigas de madeira - tronco rústico - para almoçar, o prato fundo bem cheio apoiado na almofada sobre as pernas. Vermelhão do fogão de lenha, sempre uma brasa a arder, sempre panelas repletas, sempre quente a cozinha, sempre água aquecida para o banho na serpentina.
Imutável essa rotina. Cedo, cedinho se levanta. Às seis já não há sono. Café, bolo, pão, manteiga, queijo fresco (aquele feito mesmo ontem, que estava a secar na estante da varanda), biscoito de polvilho e biscoito doce, rosquinhas de côco que nunca se há de experimentar tão boas em outro lugar. Dia e noite a TV, na varanda, incansável, sempre a tagarelar sem pausa e sem pedir água. É a mesma de sempre velha e boa TV, ligada à mesma de sempre velha e boa antena parabólica, sintonizada na mesma de sempre velha e (boa?) Rede Globo de Televisão.
Trabalho na casa há sempre a se fazer. Varre-se o chão com a grande vassoura de palha, lava-se a varanda com baldes e um latão cortado pela metade, repleto d'água. Na cozinha, sempre louça a lavar, comida a refogar, bolo ou pão a assar, doce no tacho a borbulhar, queijo na esteira a coalhar. E, é claro, o tempo todo café novo a se coar. As vozes das mulheres trabalhando enchem a casa. Falam alto, no sotaque arrastado de se comer letras. Falam das coisas da casa, falam dos conhecidos, falam das novelas e artistas da TV, danam com as crianças. Solta-se uma piada qualquer e o lugar todo se enche de risos. Não há espaço aqui para o acanhamento ou pouco falar. As crianças logo cedo aprender a tagarelar, sobre tudo e com todos, como fazem os adultos. Importante lição é saber danar com os outros. Gritar, soltar ameaças vazias, troçar com um e com outro para causar a gargalhada geral.
"Uai, minina, acord'ireito, abre essis'óio."
"Don'Ana, quant's copo di arroiz qui'eu afogo?"
"Má ondié qui foi a diaba daque'a minina? Ondié qui e'a lavô us pé? Má si foi no banheiro e'a vai levar uma burduada!"
"Foi não, e'a lavô us pé lá fora nu tanqui, num foi Gabriele?"
Muito mais bichos do que gente vivem aqui. Além dos dois cachorros e das vacas e cavalos nos pastos, tudo em volta da casa é cheio de vida. Os passarinhos cantam o dia todo, infinidade de tons e diferentes sons. Eles vêm mesmo pertinho, comendo as mangas podres que se espalham no chão sob as árvores todas, ou então entram furtivos na cozinha, a comer os farelos sobre as mesas. Um ali foge para salvar a vida, que o cachorro maior dera de querer brincar com ele à boca. Outro, pequenino filhote, aceita o dedo como puleiro por alguns minutos, proximidade mágica, até que decide voar de volta à magueira. As galinhas e o galo ficam soltos, bicando e andando aqui e acolá, por todo o entorno da casa. O dia inteiro as moscas e mosquitões pretos pairam por toda parte, sentando-se nos cachorros adormecidos, nos pés das gentes, nas comidas destapadas. Vez por outra, um pouquinho adiante, no caminho para o barracão ou para o curral, encontra-se uma cobra, e corre para lá o fazendeiro ou sua mulher, pedaço de pau à mão para matá-la. Essa daí era só uma cobrinha d'água, mas a ela se seguem os causos, da cascavel na qual quase se pisou, só um pouquinho ali à frente, da coral que por pouco não pegou aquele mulequinho que andava por ali, do escorpião que foi encontrado com susto no banheirinho lá de fora.
Você não tem fome, mas soltam lá da cozinha: "Tá pronto, vem almoçá!". E como não antender, mesmo que a fome não atenda, se no fogão de lenha borbulham as panelas velhas de ferro, com a comida boa como sempre e como nunca, que se encontra só aqui? Prato fundo, de vidro marrom, salada, tomate, pepino, legumes cozidos, com cor, tanta cor, que nunca se viu chuchu mais verdinho ou mandioquinha tão amarela quanto esses. Arroz, feijão. Ah, esse feijão! Carne, ovo, macarrão, maionese. Tudo bem temperadinho, tempero mineiro, com pimenta. Uma jarra grande, bem grande, plástico azul, de suco. De acerola, de tamarindo, de fruta de verdade que você ainda sente os pedacinhos. Sobremesa. Doce de leite, de goiaba, de banana, de caju, de figo. Para terminar, o café novo, acabou de sair. Isso é também imutável: não há como passar aqui uns dias, uma semana, sem ganhar a mais uns quilos.
Depois do almoço, da louça lavada, do jornal acabado, todos de repente somem, ao trabalho, à sesta ou à cidade de passeio, e a cozinha fica quieta, vazia e escura, somente com uma brasinha ainda tímida a arder e a garrafa de café que dura por todo o sempre.
O Sol queima e esquenta. De bicicleta desce-se, estradinha de terra pelo pasto verdinho, até a represa. Uma imensidão de calmaria, de céu e água. Silêncio. A água é verde vista de longe, e transparente de dentro. Nada-se longe, fundo, até aquela árvore lá, vê? E de lá ainda avista-se o fundo, de terra vermelha e conchinhas brancas, bem abaixo de seus pés. Subir nessa árvore, conversar sem pressa nos galhos de uma árvore cercada d'água... ah! Morna, morna, quente. Boiar de costas, com os pensamentos perdidos na imensidão do céu azul, das formas das nuvens.
À tardinha vem a chuva. Primeiro, na verdade, o vento, e a correria para se tirar aquela imensidão de tapetes do varal. Então a chuva. Forte, forte, abriga-se na varanda, mas de repente as telhas velhas não dão mais conta e na varanda passa a chovar também. Passa-se à cozinha, onde o jantar está para ficar pronto. À noite torna-se para o jantar, para a TV e a falação. Os cachorros deitam-se preguiçosos no meio dos pés das gentes da varanda. Os besouros e mais uma infinidade de bichinhos de asas voam ao redor das luzes, batendo insistentemente na tela da TV e nas pessoas, espalhando-se pelo chão. Atraídos pela refeição farta, os sapos coaxam pertinho, é só olhar para além da muretinha e se avistar um, ir até a varanda dos tanques e quase pisar em dois, sair na porta da cozinha e encontrar mais um, logo ali no degrau. Às vezes, um mais inxerido vem se instalar embaixo de um dos bancos onde as gentes sentam, ou sob as geladeiras da varanda, para interesse das crianças e brinquedo cruel dos cachorros. Terminada novamente a janta, as louças, a novela. Os últimos causos são contados em volta da mesa, enquanto mingua a fila do banheiro para se escovar os dentes. Enfim todos prontos, sonolentos, vão para a cama. Sobra só o cantar das cigarras e o coaxar dos sapos, que tornam-se, enfim, os reis da varanda.
Aqui, sempre esse aqui, imutável. E chegar depois de ano e meio, e constatar que tudo continua no mesmo lugar, do mesmo jeito que sempre foi, de que sempre se lembra, os mesmos gostos, cheiros, sons. Um aconchego bom. Aqui se tem a sensação de uma imobilidade do tempo, mas ela não é esmagadora, não. É antes uma terra encantada, em que nada, nunca, nunca vai mudar. Aqui, esse sempre aqui, é a minha terra do nunca.


"Ô Mariana, sabe o filho do juiz? E'e troxe p'á cá a bicicleta, o computador, mai e'e não brinca. E'e é gente pequena mai parece gente grande."
"E gente grande é como?"
"Gente grande é chata."
"E eu, sou gente pequena ou gente grande?"
"Ocê é gente pequena. Cê brinca, anda de bicicleta..."


... sorri, feliz. E continuei a pedalar pela estradinha cheia de lama. A menina grande na bicicleta com a menina pequena na garupa, e os dois cachorros correndo à frente, pelo pasto.
Muito me alegra agradar às gentes pequenas.