sábado, 11 de novembro de 2006

Sonho de ponta

Lá está novamente a menina, dançando no meio da cozinha e sonhando, sonhando com o dia em que será realmente bailarina. Os pés descalços, sujos e machucados sobem na meia-ponta no chão frio, e ela sonha com sapatilhas de ponta cor-de-rosa e um linóleo estendido.
Ela sonha em aprender os nomes dos movimentos que vê e sonha em aprender a executá-los.
Faz piruetas marcando cabeça num ponto sobre a pia e sonhando com um espelho. Apóia-se na parede para fazer gran-pliés, sonhando com uma barra. Desvia das cadeiras para fazer um developé. Mira seu difuso reflexo na geladeira para observar a posição dos braços. E sonha com alguém ali para corrigir os defeitos que ela não vê.
Programa o pequeno rádio para repetir a única música no piano que tem. E dança. Dança e sonha. E no seu sonha ela não está descalça nem em mangas de camisa, na abafada cozinha. Ela vai nas pontas de sua sapatilha, com sua fina meia-calça, seu collant e tou-tou brilhantes. O cabelo, caprichosamente preso num coque e enfeitado por uma tiara, e o rosto delicadamente maquiado. E dança como se flutuasse, ao som de um piano de cauda e frente a uma platéia que a aplaude de pé.
Então ela abre os olhos e aterrisa dolorosamente na realidade. Está novamente descalça e descabelada na apertada cozinha. A luz, com mau contato, se apagou; e a música acabou. A cidade iluminada lá fora, vista pela janela aberta; a sua platéia; não pára a sua agitação noturna para aplaudir.
A menina interrompe sua dança, vai tomar banho, deitar, dormir. E quem sabe, adormecida, retorne ao seu sonho. Sonho cor-de-rosa ao som do piano. Sonho de ser, de verdade, bailarina.

Nenhum comentário: