quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Essência

No alto de um morro, de pasto, de pés descalços na terra bem vermelha. Na minha essência está a música, e é um batuque de cordel que vem, são os pés a bater no chão que vem, é a dança desvairada, louca, com sorriso, gritar e tontura. (tontura de a visão branquear, branquear, branquear...) É a poeira de um chão negro, é a sujeira e os pés descalços e o suor de corpos que se encontram, uns, outros, todos, corpo contra corpo, silêncio, respiração sincronizada, um corpo só, um bicho só respirando juntos em dois. Arrepio que corre pele, água que empapa olhos, respiração acelerada que se tenta em vão cuidar. São as pedras de mariazinha, mariazinha que nem merece um "m" maiúsculo entre todas as outras marias. A ciranda das saias rodadas, os meninos encantados, pele e osso que só. Saudade sem tamanho. Uma guerra na essência, antes um massacre, genocídio. Ah, lá no alto do morro o Bom Jesus Conselheiro, Joana Imaginária, marias-velhas e mariazinhas e meninos encantados sem fim. Um menino, dois homens feitos e um velho, à frente dos quais rugiam dois mil soldados. Igrômetros singulares, página vazia. Poesia da terra, de terra, de lona velha, guardada, cheia de cheia de terra, de pedra, de sangue e suor. Ave Maria gratia plena, dominos tecum, benedicta tu in mulieribus... Cheiro de maquiagem antiga, batom rubro, grampos dourados, pó. Pó por todos os lados, nas grandes saias guardadas, no tecido mofado, nas fotos rasgadas, nas rendas antigas. Era uma janela ali, janela com grades, armário antropomórfico, e uma respiração de dar arrepios. Tão grandes arrepios, tão grandes. Ahhhhhhhhhhh.
Uma tempestade. Trovão. Clarões. Vento sem fim. Vontade de sair. De ir. Sumir. Inquietação. Inquietalma. Chove. (ninguém dorme)


Dos Três Mal-Amados Palavras de Joaquim - O Cordel do Fogo Encantado:

"O amor comeu meu nome,
minha identidade,
meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia,
meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas,
meus lenços e minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos,
o número de meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura,
meu peso,
a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu minha paz e minha guerra,
meu dia e minha noite,
meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça,
meu medo da morte."

2 comentários:

Anônimo disse...

Sempre além do horizonte.

Unknown disse...

Caríssima,
Essa explosão de imagens, de impressões sinestésicas, de metáforas subliminares tem o paradoxo dos seus demais escritos. Subindo ao morro, você parece estar descendo rumo às profundezas das sensações inconscientes. Orando à Virgem, você, maquiada, distancia-se da própria virgindade. Incapaz de dormir, você produziu um texto recortado de figuras oníricas e sensuais. Mari, sua produção escrita é infinitamente melhor quando é assim expressa, de modo subliminar, um diário “indireto”, simbólico, universalmente compreensível na Terra dos Símbolos. Digo apenas que a interjeição final onde trovões, ventos e clarões alcançam seu paroxismo me pareceu desnecessária, pois, na minha mente, a explosão derradeira aconteceria espontaneamente sem ela. No mais, seu texto é superlativo, tem dimensão literária e projeta um prolífico canal de comunicação entre a suas experiências pessoais e sua expressão artística.