sábado, 3 de janeiro de 2009

Terra do Nunca

Sim. há coisas que nunca, nunca vão mudar.
Tudo aqui, o mesmo. Há vinte anos, o mesmo. Nos próximos vinte também, o mesmo.
Os rostos envelhecem, ganham rugas e pés-de-galinha. As crianças se tornam moças. As moças se tornam mulheres casadas, com aliança no dedo, barriga a se formar, mau-humor, e um quarto próprio. Novas crianças, vindas nem se sabe de onde, surgem (sempre, sempre, uma criança diferente a brincar na varanda). Percebe-se a passagem do tempo pelas pessoas, somente. Todo o resto, imutável.
Cor própria tem este lugar. Marrom. Marrom escuro da terra vermelha, transformada em barro pastoso, que tudo impregna. O chão de cimento cru, tornado marrom pela terra que entra nos pés, pelo tempo. Marrom as portas, os móveis, a geladeira, os azulejos do sofá de cimento quase inutilizado da sala, os pratos e canecas de vidro em que se come. De marrom são pintadas as paredes até a metade. E o vermelhão. Vermelhão do chão da varanda, liso, escuro, frio, bom de se pisar descalço. Vermelhão também das muretas da varanda, boas de se sentar, as costas apoiadas nas vigas de madeira - tronco rústico - para almoçar, o prato fundo bem cheio apoiado na almofada sobre as pernas. Vermelhão do fogão de lenha, sempre uma brasa a arder, sempre panelas repletas, sempre quente a cozinha, sempre água aquecida para o banho na serpentina.
Imutável essa rotina. Cedo, cedinho se levanta. Às seis já não há sono. Café, bolo, pão, manteiga, queijo fresco (aquele feito mesmo ontem, que estava a secar na estante da varanda), biscoito de polvilho e biscoito doce, rosquinhas de côco que nunca se há de experimentar tão boas em outro lugar. Dia e noite a TV, na varanda, incansável, sempre a tagarelar sem pausa e sem pedir água. É a mesma de sempre velha e boa TV, ligada à mesma de sempre velha e boa antena parabólica, sintonizada na mesma de sempre velha e (boa?) Rede Globo de Televisão.
Trabalho na casa há sempre a se fazer. Varre-se o chão com a grande vassoura de palha, lava-se a varanda com baldes e um latão cortado pela metade, repleto d'água. Na cozinha, sempre louça a lavar, comida a refogar, bolo ou pão a assar, doce no tacho a borbulhar, queijo na esteira a coalhar. E, é claro, o tempo todo café novo a se coar. As vozes das mulheres trabalhando enchem a casa. Falam alto, no sotaque arrastado de se comer letras. Falam das coisas da casa, falam dos conhecidos, falam das novelas e artistas da TV, danam com as crianças. Solta-se uma piada qualquer e o lugar todo se enche de risos. Não há espaço aqui para o acanhamento ou pouco falar. As crianças logo cedo aprender a tagarelar, sobre tudo e com todos, como fazem os adultos. Importante lição é saber danar com os outros. Gritar, soltar ameaças vazias, troçar com um e com outro para causar a gargalhada geral.
"Uai, minina, acord'ireito, abre essis'óio."
"Don'Ana, quant's copo di arroiz qui'eu afogo?"
"Má ondié qui foi a diaba daque'a minina? Ondié qui e'a lavô us pé? Má si foi no banheiro e'a vai levar uma burduada!"
"Foi não, e'a lavô us pé lá fora nu tanqui, num foi Gabriele?"
Muito mais bichos do que gente vivem aqui. Além dos dois cachorros e das vacas e cavalos nos pastos, tudo em volta da casa é cheio de vida. Os passarinhos cantam o dia todo, infinidade de tons e diferentes sons. Eles vêm mesmo pertinho, comendo as mangas podres que se espalham no chão sob as árvores todas, ou então entram furtivos na cozinha, a comer os farelos sobre as mesas. Um ali foge para salvar a vida, que o cachorro maior dera de querer brincar com ele à boca. Outro, pequenino filhote, aceita o dedo como puleiro por alguns minutos, proximidade mágica, até que decide voar de volta à magueira. As galinhas e o galo ficam soltos, bicando e andando aqui e acolá, por todo o entorno da casa. O dia inteiro as moscas e mosquitões pretos pairam por toda parte, sentando-se nos cachorros adormecidos, nos pés das gentes, nas comidas destapadas. Vez por outra, um pouquinho adiante, no caminho para o barracão ou para o curral, encontra-se uma cobra, e corre para lá o fazendeiro ou sua mulher, pedaço de pau à mão para matá-la. Essa daí era só uma cobrinha d'água, mas a ela se seguem os causos, da cascavel na qual quase se pisou, só um pouquinho ali à frente, da coral que por pouco não pegou aquele mulequinho que andava por ali, do escorpião que foi encontrado com susto no banheirinho lá de fora.
Você não tem fome, mas soltam lá da cozinha: "Tá pronto, vem almoçá!". E como não antender, mesmo que a fome não atenda, se no fogão de lenha borbulham as panelas velhas de ferro, com a comida boa como sempre e como nunca, que se encontra só aqui? Prato fundo, de vidro marrom, salada, tomate, pepino, legumes cozidos, com cor, tanta cor, que nunca se viu chuchu mais verdinho ou mandioquinha tão amarela quanto esses. Arroz, feijão. Ah, esse feijão! Carne, ovo, macarrão, maionese. Tudo bem temperadinho, tempero mineiro, com pimenta. Uma jarra grande, bem grande, plástico azul, de suco. De acerola, de tamarindo, de fruta de verdade que você ainda sente os pedacinhos. Sobremesa. Doce de leite, de goiaba, de banana, de caju, de figo. Para terminar, o café novo, acabou de sair. Isso é também imutável: não há como passar aqui uns dias, uma semana, sem ganhar a mais uns quilos.
Depois do almoço, da louça lavada, do jornal acabado, todos de repente somem, ao trabalho, à sesta ou à cidade de passeio, e a cozinha fica quieta, vazia e escura, somente com uma brasinha ainda tímida a arder e a garrafa de café que dura por todo o sempre.
O Sol queima e esquenta. De bicicleta desce-se, estradinha de terra pelo pasto verdinho, até a represa. Uma imensidão de calmaria, de céu e água. Silêncio. A água é verde vista de longe, e transparente de dentro. Nada-se longe, fundo, até aquela árvore lá, vê? E de lá ainda avista-se o fundo, de terra vermelha e conchinhas brancas, bem abaixo de seus pés. Subir nessa árvore, conversar sem pressa nos galhos de uma árvore cercada d'água... ah! Morna, morna, quente. Boiar de costas, com os pensamentos perdidos na imensidão do céu azul, das formas das nuvens.
À tardinha vem a chuva. Primeiro, na verdade, o vento, e a correria para se tirar aquela imensidão de tapetes do varal. Então a chuva. Forte, forte, abriga-se na varanda, mas de repente as telhas velhas não dão mais conta e na varanda passa a chovar também. Passa-se à cozinha, onde o jantar está para ficar pronto. À noite torna-se para o jantar, para a TV e a falação. Os cachorros deitam-se preguiçosos no meio dos pés das gentes da varanda. Os besouros e mais uma infinidade de bichinhos de asas voam ao redor das luzes, batendo insistentemente na tela da TV e nas pessoas, espalhando-se pelo chão. Atraídos pela refeição farta, os sapos coaxam pertinho, é só olhar para além da muretinha e se avistar um, ir até a varanda dos tanques e quase pisar em dois, sair na porta da cozinha e encontrar mais um, logo ali no degrau. Às vezes, um mais inxerido vem se instalar embaixo de um dos bancos onde as gentes sentam, ou sob as geladeiras da varanda, para interesse das crianças e brinquedo cruel dos cachorros. Terminada novamente a janta, as louças, a novela. Os últimos causos são contados em volta da mesa, enquanto mingua a fila do banheiro para se escovar os dentes. Enfim todos prontos, sonolentos, vão para a cama. Sobra só o cantar das cigarras e o coaxar dos sapos, que tornam-se, enfim, os reis da varanda.
Aqui, sempre esse aqui, imutável. E chegar depois de ano e meio, e constatar que tudo continua no mesmo lugar, do mesmo jeito que sempre foi, de que sempre se lembra, os mesmos gostos, cheiros, sons. Um aconchego bom. Aqui se tem a sensação de uma imobilidade do tempo, mas ela não é esmagadora, não. É antes uma terra encantada, em que nada, nunca, nunca vai mudar. Aqui, esse sempre aqui, é a minha terra do nunca.


"Ô Mariana, sabe o filho do juiz? E'e troxe p'á cá a bicicleta, o computador, mai e'e não brinca. E'e é gente pequena mai parece gente grande."
"E gente grande é como?"
"Gente grande é chata."
"E eu, sou gente pequena ou gente grande?"
"Ocê é gente pequena. Cê brinca, anda de bicicleta..."


... sorri, feliz. E continuei a pedalar pela estradinha cheia de lama. A menina grande na bicicleta com a menina pequena na garupa, e os dois cachorros correndo à frente, pelo pasto.
Muito me alegra agradar às gentes pequenas.

3 comentários:

Alice Agnelli disse...

Ai, mari!

Que delícia!
Que vontade de fugir pra aí e fazer das férias com cara de férias!

De andar descalça, de bicicleta.

Sorte que só de ler deu para eu me transportar rapidão, nem que tenha sido por uns minutinhos só.

Wendy disse...

Nossa que maravilha! Me senti como se estivesse na Bahia..minha Terra do Nunca, muitas coisas são semelhantes da sua rsrs. A vida no interior realmente é imutável!
Parabéns!
Wendy Almeida

Pequi Atômico disse...

Eita guria, muito bom hein!!!

Até eu, um garoto criando na urbanização pulsante do suburbio goianiense (kkkkk!) me senti tão a vontade como num lento dia de domingo...

Senti saudades da infância que não tive hehehehe


bjão carregado de cores goianas e inté